Profº Godofredo de Oliveira Neto
Ana e a margem do rio
Godofredo de Oliveira Neto
Capítulo 10
Elas sabiam muito bem do que se tratava. As guelras se abriam, leves, quando elas pensavam na carne fresca, no sangue viscoso e apetitoso que, de certeza, ia jorrar da aliança entre a jiboia e o jacaré. Animais de todo tipo, paca, quati, porco-do-mato, até anta; caça aos montões. O líder do cardume das traíras-pixunas foi quem primeiro se pronunciou.
— Devem estar tramando caça grossa, jacaré e jiboia juntos sempre ficam inventando coisas do interesse só deles. Vamos tentar não perdê-los de vista. Temos que ficar agrupados, assim eles não nos vêem. Na hora em que for preciso, nós nos dispersamos e mostramos o verdadeiro tamanho do nosso cardume. Esses répteis são de um egoísmo insuportável, existe comida para todo mundo, mas eles querem tudo pra eles, nem sei o que podemos fazer. A amargura que acompanhava a manifestação do líder causou algum incômodo, principalmente nos mais jovens. Alguns até pensaram em insurreição, mudança de comando, muitos demonstravam impaciência.
Em certa hora, o gigantesco cardume cindiu-se em suave deferência, passava um pirarucu seguido de peixes menores. O grande peixe vinha de barriga cheia, mal olhava para as traíras. Elas sabiam que em outros momentos a coisa podia ser diferente. Podiam ser engolidas. E a língua em forma de lixa do pirarucu ralava e esfolava a presa antes de ela ser engolida. Era um terror. Um peixe de sorte que tinha conseguido escapar contou os horrores dentro daquela boca, jogado para um lado, para o outro, o corpo lixado. Alguns até imploravam para serem chupados de uma vez para o estômago. Dessa vez, com seus dois metros de comprimento, o maior peixe da bacia amazônica, o dorso escuro se avermelhando perto da cauda, nadava devagar, majestático, a bocarra meio quadrada se abrindo e fechando em intervalos regulares. O pirarucu ia comentando em voz alta, sem esperar observação dos seus assessores.
— Em outras horas, esse tipo de peixe bem que me mobilizaria. Agora estou sem fome. Me dá até enjôo.
Apesar de nenhum peixe responder, ele continuou, como se alguém tivesse feito um comentário:
— Não, não é que não goste desse tipo de carne. É que estou sem fome mesmo, só isso.
E continuou a se dirigir ao interlocutor imaginário.
— Claro, claro, talvez amanhã volte aqui e devore uns trezentos daqueles mais tenrinhos. Mas hoje não.
Com o fim da passagem do colossal habitante daquelas águas e comitiva, o chefe do cardume continuou as reflexões, ouvido com atenção pelas traíras em ordem unida. Ele tinha notado a inquietação. Esse desassossego vinha aumentando nos últimos tempos, ele até tremeu dessa vez. Parecia que sua autoridade ia ser contestada pra valer. A passagem do pirarucu foi providencial, distraiu temporariamente os peixes mais revoltados. Mas ele ainda dirigia o cardume.
— Acho que devemos conversar com o jacaré e com a jiboia — disse, então, com voz meio rouca.
Um dos peixes, de peito estufado e dentes avantajados, propôs que, ao contrário, eles fossem aniquilados para sempre da face da terra amazônica.
A contraproposta imediata do colega de peito estufado e dentes avantajados confirmava a impaciência do cardume, que exigia ações mais concretas. O líder refletia. "Quem for fraco deve buscar estratégias e maneiras de fazer-se forte", dizia seu pai. Acima de tudo, entretanto, pairassem a grandeza e a tolerância. Mas diante do descontentamento crescente, o que fazer? Na dúvida, manteria o seu argumento.
— Aniquilar como? — ironizou, assim, o líder.
O mesmo peixe descontente e insolente abriu a boca para falar. Pelo jeito, não se deixaria vencer tão facilmente.
— Ora, o jacaré e a jiboia estão toda hora dentro d'água, principalmente o jacaré, e se somos milhões de traíras, milhões e milhões de mordidas com dentes afiados acabarão por destruí-los, vai ser fácil — retrucou.
O peito e os dentes sobressaíram com intensidade quando ele pronunciou "milhões e milhões". Um bando de guarás e flamingos voava em flecha sobre o rio. No sobe-e-desce as asas quase roçavam as águas amareladas, a seta alada vermelha e rosa sibilava em busca de melhores alagados e manguezais com caramujos, caranguejos e pequenos peixes. Alimentos disponíveis, fartos e fáceis de serem agarrados. As traíras invejaram as aves. Com razão. Ali no alto, as avaliações eram as mais otimistas.
— Lá para a lagoa mirim tem de tudo. Pequenos peixes, caramujos, caranguejos, lesmas, pequenas aranhas e milhares de outros bichos.
— Mas naquele lago já não tem mais graça. Vamos procurar outro diferente.
— Então tá, vamos. Comida é que não falta.
— Que vida boa, gente do céu! Um membro do cardume que não estava na superfície, e, por isso, não via a revoada colorida dos guarás e dos flamingos, interveio:
— Ou a gente trabalha para que eles próprios se destruam; semeamos uma discórdia entre os dois répteis e pronto.
O argumento tinha astúcia. Podia ser uma saída. A traíra que fizera a proposta mostrava-se, entretanto, carrancuda e parecia mal-humorada. Talvez por conta dessa cara mal-humorada, ou em decorrência do seu semblante severo demais, o certo é que a proposta de provocar uma desavença entre o jacaré e a jiboia não encontrou eco junto aos peixes próximos. Ao contrário, sabe-se lá por quê, reforçou a argumentação do líder.
— E preciso dialogar com a dupla — gritou, do fundo, um jovem de ar tranquilo e aparentando estar de bem com a vida. Ele obteve, contudo, prontamente uma resposta.
— O que que adianta? É o que sempre tentamos fazer, e de pouco serviu até agora — reagiu um outro membro do cardume, mantendo os dentes à mostra.
Os adeptos de ações mais concretas se multiplicavam. Dois blocos com propostas antagônicas foram se formando. Diálogo e ação, pelo jeito, eram ali incompatíveis.
Os pingos da chuva, pesados, coçavam o dorso dos peixes, os filhotes escondiam-se sob os pais, aquelas gotas alfinetavam peixes pequenos. O temporal, entretanto, ia diminuindo. Não demorou para que se transformasse em fina garoa.
Diante do crescimento de novas lideranças aqui e lá, com propostas ousadas e inovadoras, urgia o exercício da autoridade. O líder do bando, considerado há tempos o mais hábil do cardume a dilacerar e arrancar pedaços de suas vítimas, expôs, então, os caninos e afirmou, sério:
— Ouvi muito, ponderei os argumentos trazidos para discussão, refleti. E decidi com a responsabilidade e o dever do meu cargo: Quem não quiser o diálogo está fora do cardume!
A incisiva objetividade da frase da traíra chefe não abria espaço para discussões. Valiam a hierarquia e a ordem. Não cabia outra saída. O cardume, tal imenso navio negro desenhado no fundo do rio, curvava-se com humildade diante da experiência, garra e habilidade do comandante. Mesmo os mais afoitos ainda acatavam o argumento do chefe. Mas até quando se submeteriam àquela autoridade?
Nesse mesmo momento, o jacaré que se atracara com o sócio da jiboia dava a sua versão da refrega para outro companheiro.
— Dei-lhe uma lição daquelas!
— E ele aprendeu? — perguntou um jovem.
— Se aprendeu? E como! Quase não conseguia se mexer. Deixei que as coisas se ajeitassem para não deixar ele mal. Coitado. Acabava de estabelecer uma sociedade com a jiboia. Tive pena dele. Dei uma boa dentada pra ele ter mais respeito na próxima vez. E deixei aquele pedaço de terra. Fiz minha boa ação.
A jiboia que, do alto da árvore, tinha exibido a sua pele nova e provocado a sócia do jacaré também dava a própria versão para a sua peleja.
— Coitada da cobra amiga do jacaré.
— Coitada por quê? —perguntou uma cobra adoentada.
— Porque dei um salto da árvore, agarrei a pobre pela cabeça. E ela quase ia sufocando. Mas fiquei com pena.
— E ela foi embora? — insistiu a adoentada.
— Claro, não tive coragem de fazer mal a ela. Que faça bom proveito daquele pedaço de terra. Aliás, aquele pedaço de floresta não é bom.
Enquanto isso, os dois sócios continuavam a marcha ao longo da margem. Uma onça rugiu não muito longe de onde estavam. "Pelo esturro, é onça preta", resmungou o jacaré. Com efeito, pouco demorou para que o felino, negro como um urubu, surgisse de trás de uma touceira de plantas com folhas largas. As pupilas brilhavam. Sua cauda balançava como a prevenir do salto iminente, as presas amareladas se destacavam na massa negra. Uma nesga de céu que conseguia furar a copa da floresta se refletia às vezes nos seus olhos cor de mel. Ela parecia um bicho dos ares, mas o corpo era da terra. A onça preta olhava mais atentamente para a jiboia. O jacaré era outra história. Não tinha nem onde morder aquela couraça. A cobra preparou-se para a defesa. O olhar de ser de outro mundo desenhado na cara negra não ia deixar por menos, a onça partiria para a luta. Mas justamente o pacto com outro mundo talvez já previsse desenlace diferente para aquele encontro. Só podia ser. O imenso gato preto moveu a cauda duas vezes, espetou as orelhas, como se curioso, olhou para um lado, depois para o outro, e se retirou com passadas mansas.
A jiboia respirou fundo e, ainda assustada, perguntou ao jacaré:
— Você viu o efeito estranho criado pela onça, jacaré?
— Que efeito?
— Você não viu? Na frente dela tinha um galho caído que parecia o corpo de um cervo, a ponta do rabo da bichana aparecia no outro lado.
— São ilusões, jiboia, ilusões. Quimeras.
— É, mas que foi estranho foi. Os dois retomaram o caminho.
O sagui seguia com olhos nervosos e agitados o andar já meio trôpego dos dois índios sempre mudos.
— Eu sei que um dia nós vamos achar a nossa nação. — Eu também sei, Mucura, eu também sei.
— Vamos continuar andando.
— É, andando, andando por esses matos sem fim, fugindo do fogo, da motosserra, da febre.
— Um dia isso vai acabar, Mucura, acabar.
O pequeno macaco lá no alto sentiu pena e cansaço por eles.