Profº Godofredo de Oliveira Neto
Ana e a margem do rio
Godofredo de Oliveira Neto
Capítulo 9
Estou quase decidida mesmo a não entregar a história relatada por minha mãe e transformada por mim. Ontem dei números aos capítulos. Incluí essa parte, como agora, em que falo da professora, da escola e dos meus colegas. Tornaram-se capítulos exatamente corno os demais sobre a vida do jacaré e da jiboia da floresta amazônica. Afinal, tanto nas memórias em forma de diário quanto na lenda dos animais, trata-se de mim mesma, do meu mundo, da minha cultura, das minhas histórias de amor, da história das nações indígenas da minha região. São as minhas confissões. Parece que ao narrar descubro urna vida escondida em algum lugar, que não conseguia ver. Recebi as palavras da língua portuguesa de um jeito, e também a vida de um jeito. Fui invadida por essas palavras e por essa vida. Assisti a tudo passivamente, ou quase. Escrevendo, bato de frente com o recebido e me dou conta de que via as coisas de maneira desfocada e usava as palavras de forma distorcida. Dizia o que os outros queriam que dissesse, e via a vida que era para ser vista. Ao escrever as confissões, reconstruo nova realidade.
Romanceando o existir do jacaré, da jiboia e dos outros animais, sinto-me melhor, corno mais aliviada, e tendo a sensação de ajudar a suavizar a vida dos que me lerem (não sei quem realmente, mas escrevo para alguém,
disso tenho certeza, pode até ser eu mesma). É como se eu dissesse "tudo bem, usem as palavras que aí estão e vejam a vida da maneira como ela chega até vocês, mas saibam que cada um de nós existe como indivíduo e, por isso, pode se servir da sua própria visão e das suas próprias palavras. Assim é possível enxergar um outro mundo".
Tive, há pouco, uma decepção como Galdino. Expliquei-lhe que, muito provavelmente, não ia devolver o caderno com o texto à professora. Detalhei a composição dos capítulos, falei que vinha se tornando um tipo de diário, e mostrei-lhe um desses últimos capítulos (aquele em que as duas jiboias brigam, acho; não, não, foi sobre o cafuné das maracanãs). Dessa vez foi ele. A mesma pergunta. "Foi você que escreveu isto, Ana? Tem certeza? Não foi urna das freiras?" "Puxa, Galdino", retruquei, magoada e triste. Ele me olhou sério e não disse nada. E nem deu para ficar com raiva, corno aconteceu com a professora!
Felício voltou a frequentar o galpão da serraria. Galdino, no intervalo da aula (hoje a professora fez urna palestra longuíssima sobre a história das ciências), falou dos comentários por aí sobre a minha narração escrita e dos elogios sobre os meus trabalhos do primeiro grau. Disse que, ao ler o trecho que eu lhe mostrei, tinha entendido. Não sei se estava zombando.
Outro dia, a Fabiana Suzan afirmou, com toda a seriedade: "Esse cara, o Felício, pelo que você me conta, gosta de ti." Ela é Poyanawa, mas nascida em Belém do Pará. O pai é gaúcho, de origem Kaingang, virou garimpeiro, percorrendo, meio perdido, toda a região amazônica. Morreu em Serra Pelada. O estilo dela, direto e franco, vem do pai.
Na lenda da minha mãe havia um momento em que surgiam novos personagens do fundo das águas. Com a observação do Galdino, tive, na hora, vontade de virar peixe e desaparecer em um desses igarapés da vida. E uma vontade maluca de comer pato ao tucupi com jambu, que a cozinheira do convento e a minha mãe preparavam com tanto carinho.
De noite, em casa, me olhei no espelho. Detestei os meus olhos negros e redondos, os cílios compridos demais. Não fossem os cílios e o tom escuro, pareciam os olhos da viuvinha. Os olhos do jaguar eram clarinhos porque não eram reais. Vinham do leite extraído de uma árvore que foi pingado pelo gavião-real nas órbitas vazias. Os olhos verdadeiros do felino tinham sido devorados pelas piranhas. É que o jaguar, sabendo que o caranguejo conseguia mandar os seus próprios olhos apreciarem o grande lago salgado e trazê-los de volta, quis fazer o mesmo. Pediu ajuda ao caranguejo, que o advertiu do perigo. O jaguar insistiu. E deu no que deu; perdeu-os. Fiquei em dúvida se preferia ser um jaguar, um caranguejo ou eu mesma. O japiim não tem canto próprio. Imita o canto dos outros pássaros e até berro de onça. E os seus olhos mudam de cor segundo a luz do dia. Estou mais para japiim mesmo.