Profº Godofredo de Oliveira Neto
Ana e a margem do rio
Godofredo de Oliveira Neto
Capítulo 4
A repentina reação do jacaré referindo-se ao calor abafado, às nuvens escuras e à ameaça de chuva, se calculada ou não, mostrava, de qualquer maneira, a firme intenção de iniciar uma conversa com a jibóia. Ou pelo menos de quebrar o aparente gelo inicial. Algo havia mudado. Ele também tinha, no fundo, seus próprios projetos.
O hóspede do jacaré de penas brancas e asas pretas, e de pensamento caótico, assistia ao diálogo com interesse. E refletia. "Claro que vai acontecer alguma coisa. Essas aí sempre aparecem melosas, dando piscadelas sedutoras, o outro bobo acaba se deixando seduzir, vai ver que até acha ela bonita. Ela vai acabar chamando ele de jacarezinho, quer apostar? Reage, meu velho, reage; não, não, não estou propondo isso por interesse próprio, é no interesse de nós dois, acredite, não estou pensando só nos bichinhos que andam em tua volta e nos pedacinhos de comida presos nos teus dentes, juro."
A jibóia demonstrou naturalidade com a observação sobre o tempo. Continuou como se nada fosse, virou a cabeça, lambeu a sua pele lisa e fria, ajeitou parte do corpo enrolado na árvore, olhou, compenetrada, a deslocação das nuvens e concordou com um movimento de pescoço.O casal de macacos, no alto de um pé de ingá-açu, dialogava. "Você não acha que ela vai propor algo ao jacaré? Claro, você tem razão, vai sim. E o que será que ela vai oferecer? Vai propor que se unam para conseguirem, juntos, mais bichos pra engolir. Então vamos jogar umas vagens de ingá na cabeça dela. Capricha na pontaria." O jacaré assustou-se com o súbito despencar de frutos do ingazeiro perto da cobra e dele próprio. "Deve ter sido uma lufada de vento do norte soprada só lá na crista das árvores", pensou o saurio.
— E quanto à caça, jacaré? — perguntou a cobra logo em seguida, aproveitando o sinal de abertura de diálogo vindo, havia pouco, do parente de quatro patas e couro duro.
— Instale-se se quiser, jiboia, aqui é um bom lugar, sempre aparece um ou outro bicho desprevenido. O jacaré nem parecia mais o mesmo. Oferecia espaço e comida. Aquela a quem tinha ignorado no início ia entrando na sua vida, um aliado que vinha preencher algum vazio. A jiboia não se fez de rogada e, solícita, respondeu:
— Logo imaginei, obrigada.
— De nada — agradeceu de pronto o jacaré.
O tom de agradecimento, o que tinha de curto tinha de denso em conteúdo. Sucinto e repleto de significações do tipo "sou bem-educado, mas quem manda aqui sou eu".
A jiboia lembrou-se das conversas passadas de geração em geração sobre a ferocidade e suscetibilidade daqueles habitantes da beira d'água. Uma prima teve, certa vez, o corpo dilacerado por um jacaré ranzinza que se irritou com algumas observações dela. A cobra, ainda jovem, tinha dito "tô vendo um dente meio podre lá no fundo da sua boca"; outros juram que foi por conta da frase "engraçado, nunca me acostumei com os jacarés, esse rabo estranho, essa boca rasgada, essa casca grossa, que horror!" ouvida pelo velho ranzinza quando a jovem jiboia conversava com a outra. Mas antes se travara um diálogo entre as duas primas.
— Uma coisa que, sinceramente, eu não gostaria de ser é jacaré. Bicho mais feio! Eu me acho linda.
A prima pronunciou a frase com convicção, fitando um esquilo saltitar numa galharia.
— Eu também não gostaria de ser jacaré, estou muito bem como sou.
A jiboia disse a frase com ar dubitativo, apesar de a última parte ser afirmativa em todos os aspectos. A voz até tremeu ligeiramente. A prima notou e indagou:
— Você não tem orgulho de ser jiboia, não? Preferia ser gente?
— De ser jiboia tenho orgulho sim, e é claro que não queria ser gente. Mas tenho algumas imperfeições físicas de que gostaria de me livrar, uns sinais a mais, uns anéis a menos.
A sinceridade e a exibição do que lhe arranhava o peito por dentro não sensibilizaram a prima nem provocaram comiseração ou compreensão.
—Pois eu me acho perfeita — respondeu ela logo em seguida. — Não vejo defeito nenhum em mim.
A arrogância erguia com toda a força a cabeça do réptil, num formidável e expressivo retrato da soberba, só comparável ao porte da altiva bacaba. Foi logo a seguir que cruzaram com o jacaré e ela falou do dente podre, da boca rasgada e da casca grossa desses bichos.
Uma parte da prima foi encontrada no fundo de um igarapé, e a outra, pendurada num arbusto. Por arte do jacaré ranzinza.
A jiboia sabia, pois, que devia formular as perguntas ao jacaré com cautela.
— O que é que acaba de comer?
O tom da interrogação da jiboia passava amizade, simpatia e cumplicidade. Era nesse clima que amigos deviam se comportar. Respeitando-se, interessando-se um pelo outro, auxiliando-se quando necessário.
— Uma garça e os seus filhotes, com ninho e tudo, os galhinhos secos atrapalharam. Foi fácil pra apanhar, mas difícil pra digerir — ouviu ela, logo depois.
A resposta do jacaré tinha imitado o timbre da frase da sua colega, que permanecia enrodilhada no tronco de maçaranduba-do-pará.
O espírito de aliança ia se fortalecendo. Juntos, formavam uma sociedade, de fato, invejável. De uma certa maneira completavam-se. Um tornava-se o braço forte do amigo que, por sua vez, virava uma fraterna e tátil mandíbula a serviço do outro. Palavras eram agora quase desnecessárias. Saltavam aos olhos as vantagens dessa pragmática união.
Um silêncio emoldurado apenas pelo murmúrio da floresta se instalou, então, entre o jacaré e a jiboia. Como se palavras e argumentos tivessem se esgotado. No galho do jacarandá, espraiava-se com lentidão uma preguiça; as unhas solidamente fincadas na madeira garantiam-lhe a estabilidade e a paz, só ameaçadas pelo voo, em círculo, do gavião-de-penacho roçando o cimo das árvores. A preguiça, naturalmente, não gostava e murmurava para si própria:
—O mundo seria perfeito se não existisse esse gavião. Vivo tendo que me esconder atrás dos troncos.
Claro que o gavião pensava diferente:
— Essas preguiças são vagarosas mas espertas. Ter que ficar rodando assim sobre as árvores dá até tontura. Elas conseguem se esconder de um jeito que não consigo entender. Mas ainda pego uma.
O jacaré e a jiboia ouviram o piar do gavião à caça do bicho-preguiça.
A mudez dos dois répteis ameaçava ser desfeita, às vezes, por um pigarro do jacaré, um suspiro da cobra. O silêncio incômodo foi quebrado pelo primeiro.
Ele virou-se, olhou fixamente a jiboia, maquinou um plano, deteve o olhar no entra-e-sai frenético da língua ida nova colega ainda torcida na árvore, deu urna virada no corpo, entortou-se todo, a ponta do rabo quase encostava na sua cabeça, e desabafou com convicção:
—Olhe, cara jiboia, ria verdade não é bem aqui o melhor lugar, vou lhe mostrar onde tem presa fácil, de pelo, das suculentas.
As palavras vieram acompanhadas por sensíveis demonstrações físicas de júbilo e de impaciência, como pequenos arranhões com as patas de trás na terra úmida, um abre-e-fecha esquisito das mandíbulas, nervosas batidelas com a ponta do rabo num velho tronco de jacarandá.
O desabafo era um prato feito para as previsões da viuvinha. "Não deu outra. Ele vai contar tudo pra ela, vai esquecer de mim. Adeus momentos de prazer na areia na margem do rio, ele de boca aberta, as bicadas nos dentes enormes e os bichinhos em volta do seu corpo também ao alcance do meu bico. Pra me irritar ainda mais, só falta ele começar com rapapés, obrigado, maninha jiboia, e por aí afora."
Para o jacaré ia se tornando trabalhoso segurar a emoção. Era cada vez mais difícil, também, esconder os desejos. Com a cobra de aliada ele poderia acumular mais comida, muito mais. Claro, para que ocultar o lugar onde havia caça fácil e disponível? Presa fácil, de pelo, das suculentas! Esconder dela pra quê?
A cobra apertou com força o tronco de maçaranduba seu gesto natural para coçar a barriga —, simulando serenidade, e declarou, com certa tensão na voz:
—É que você não consegue apanhar esses bichos sozinho, não é verdade? E quer que eu ajude, em seguida dividimos as partes, certo?
Ela reagia tal se dissesse "não sou boba". E não era mesmo. A ela, claro, também interessava a formação de urna sociedade. Mas talvez tenha ido um pouco longe demais ao desvelar as intenções e fraquezas do jacaré, e, assim, repetiu a última palavra com medo, mais baixinho, "certo"?
O outro engoliu em seco. Parecia ter sobrado ainda um pedaço de garça ou de ninho na bocarra. Ele hesitou, contou de baixo para cima e de cima para baixo as quatro largas voltas marrons com desenhos amarelados da cobra em torno do tronco de árvore, repetiu a operação, aumentava, assim, o tempo para deliberação; tamborilou o chão com a pata direita, deu uma rabanada, teve certeza de que aquele bicho não tinha nada de Cobra Grande, dava pra ver pelo olho, e confessou, com arrogância:
—É, é isso mesmo. Eu é que conheço os lugares mais usados como bebedouro, e, se me enfezar, tenho o poder de destroçar qualquer bicho com os dentes, inclusive cortar urna cobra ao meio se me der na telha.
Como num tabuleiro de xadrez, as peças iam sendo movimentadas, mas com vistas ao empate. Torres, bispos, peões e cavalos vinham substituídos por pronomes, adjetivos, verbos e substantivos que pouco diziam. Aliarem-se um ao outro era o que interessava. Os competidores iam, em breve, derrubar, de propósito, os seus respectivos reis. As peças e às palavras o jogo !
Os dois sócios ouviram um assobio. Foi a jiboia quem se manifestou.
—Que assobios são esses?
— Cigarras, jiboia, cigarras. E agora é época de cantar?
—Se estão cantando deve ser, jiboia.
—Estranho.
—Por quê?
— Por nada. Acho que é o boto quando se transforma em gente que faz nascer essas cigarras. Já vi ele assobiando junto com elas.
—É, jiboia, era de alegria. O boto, naquelas horas em que vira gente, esquece até da vida. Por ele, pode até morrer, o que vale é ser gente e assobiar. Como as cigarras.
—Será que é bom ser gente, jacaré?
—Pelo assobio do boto quando vira gente, deve ser. As cigarras, de tanto assobiar, terminam por viver mais e melhor.
—Mais e melhor? — perguntou a cobra, em dúvida.
O jacaré não respondeu, só deu de ombros.
As cigarras continuavam os zunidos. A jiboia sentiu certo tremor, que procurou ocultar. Os insetos, barulhentos e invisíveis, lembravam fantasmas da sua infância. As cigarras crescendo, assustadoras, o ziziar transformado em trovão, as asas monumentais providas, subitamente, de
enormes esporões. O jacaré não parecia ter medo, o danado. Pesadão em tudo.
Bakororo e Mucura passaram a pouca distância do jacaré e da jiboia. O sagui-leãozinho adivinhava a troca de frases.
—Vamos lá pro outro lado, perto do ninho de abelhas do poço grande, lá podemos comer mel.
— Aquelas abelhas já morreram na fumaça das queimadas, Bakororo, todos os índios daqui já sabiam.
—É, Mucura, mas elas podem ter voltado, podem ter voltado.
—Voltado como, se a árvore também virou cinza, ela e muitas outras?
O sagui não respondeu pelo marido. Bakororo seguia andando, calado, como Mucura.