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Capítulo 6

O jacaré tinha falado grosso ao dizer que cortava urna cobra ao meio. Tentava impressionar, sua autoridade não podia ser contestada na nova sociedade com a jiboia. Nem a onça-pintada que naquele exato momento pisava macio ali pertinho e trocava olhares furtivos com os olhos de vidro do réptil se aventuraria a mexer com aquele bicho de rabo comprido e potente, mandíbulas possantes e dentes cortantes. O assobio das cigarras e a conversa que se seguiu atenuaram um pouco a tensão. Mas a ameaça do jacaré ainda ecoava. 

     Da boca da cobra, então, como empurradas pela língua ágil, saíram as palavras conciliadoras "aceito, jacarezinho, você indica o lugar, eu capturo a vítima, você a divide em duas partes e nos tornamos sócios, tá?"

     A musicalidade da frase iniciada pelo mavioso "aceito, jacarezinho" quase dava voltas no ar imitando o corpo da cobra enleado ao tronco da árvore. Os olhos serpejantes marcavam o ritmo.

—Tá, mas não será dividida bem ao meio, a parte maior é para mim, sabe como é, jacaré precisa de mais comida e às vezes posso não controlar os meus ímpetos. Caso faça trapaça comigo, corto você em duas partes, corno já ameacei, desculpe a sinceridade, é que gosto das coisas claras.

    A jiboia já sabia disso. Mas, ali, no caso, as ameaças eram, corno se dizia, da "boca pra fora". Importante mesmo era a conjunção de força dos dois.

— Aceito, jacaré, repito, aceito — redarguiu, então, a cobra.

 O jacaré tinha proferido a advertência olhando para o pé de guaraná onde um casal de tangarás disputava com safras e gaturamos as pequenas frutas avermelhadas. A algaravia dos passarinhos era intensa, as palavras desencontradas e discordantes.

 — Essa está ainda verde, não deve comer.

 — Então come a outra. Eu gosto quando elas estão ainda um pouco verdes.

— Deixa eu experimentar. —Você disse que não devia comer, então agora não come.

— Disse mas retiro, não pode mudar de ideia?

— Pode, mas essa é minha.

— Eu no fundo quero a outra mesmo, aquela mais madurinha. Fica com a verde.

    De vez em quando passava um tucano faminto; a algazarra dos gaturamos, das saíras e dos tangarás cessava.

    O jacaré já tinha ouvido falar do velho índio que serviu de tinta colorida para as penas dos pássaros. As cores daquelas aves no guaranazeiro tinham saído do seu corpo. Diziam que esse índio praticara uma grande maldade com um companheiro.

    Certa vez deixara-o preso no alto de urna andirobeira. Tinha cortado a escada improvisada, feita de cipós e galhos de angelim-rajado, porque o amigo, lá de cima, tentando pegar filhote de gavião no ninho, fez urna brincadeira sobre

partes do corpo da sua mulher que muito o desgostara.

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   As súplicas lá do alto de pouco adiantaram. Não me deixa aqui em cima sozinho.

 —Deixo sim, que é pra você aprender.

—Não queria ferir ninguém quando comparei a penugenzinha de nada dos gaviõezinhos com partes do corpo da tua mulher.

—Pois feriu, agora fica aí em cima.

   Aquele que estava no alto da árvore já quase morria de frio e fome quando foi salvo pelo pai dos pássaros do ninho.  É que o gavião, ao tornar conhecimento da história por uma coruja faladeira, apressou-se em voltar para casa e, ainda no caminho, pensou bem e acabou por perdoar e se apiedar do índio já fraco e doente, que mal conseguia se agarrar no tronco da andirobeira, segundo descrições da coruja. A ave de rapina, quando pousou no ninho, ergueu o bico adunco e exibiu as garras afiadas. Em vez, contudo, da agressividade que seria de se esperar numa situação dessas, jogou parte de sua plumagem sobre o arrependido caçador de filhotes que tivera a infelicidade de aludir a detalhes do corpo da mulher do amigo. No mesmo instante o índio se transformou em gavião.

     Os dois gaviões, então, alçaram voo, foram até a taba e agarraram o homem que havia maldosamente cortado a escada. Levaram-no pelos ares para servir de alimento aos pássaros. Todas as aves foram convidadas para o banquete, e, quando chegavam, recebiam uma marca colorida extraída de partes do corpo do índio transformado em comida.

     Foram assim pintadas as araras, o bico do mutum e os tangarás. O fel esverdeado e partes esbranquiçadas do interior da cabeça do índio deram cor às asas do papagaio e do periquito e à plumagem da garça. E assim que os homens da floresta explicavam a origem da coloração dos pássaros. pássaros. O boto contava sempre essa história aos outros bichos. O jacaré foi retirado do pensamento sobre cores e pássaros com a frase "está me ouvindo?"

— Estou, jiboia, posso cortar você em duas partes —respondeu ele meio sem pensar. A cobra retornou a palavra.

   Sua réplica tinha relação direta com a proposta do jacaré e com a frase "corto você em duas partes".

— Mas, jacaré, as jiboias, quando querem, são muito mais rápidas do que vocês, tanto na água quanto no seco. Podemos agarrar com mais facilidade certa variedade de caça; aliás, que gênero de bicho tem mais nesse tal lugar ?

    A jiboia reagia no discurso, mantinha a dignidade na forma, mas a disputa, estava ganha, conseguira a sua meta — a aliança. A primeira parte da oração era, pois, vazia, murcha, sem importância, quase um jogo de palavras, a pergunta do final da sentença que gênero de bicho tem mais nesse tal lugar é que valia. E ela sabia que o jacaré ia responder.

    De fato, a listagem com os bichos que vinham matar a sede no grande rio não se fez tardar. Mas veio acompanhada por uma observação: que fossem discretos. A resposta do jacaré dava a entender que nunca era demais lembrar a necessidade de discrição e cautela em face de certos elementos da fauna amazônica.

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— Paca, quati, capivara, porco-do-mato, por aí vai. Vamos até lá, é na foz de um afluente do Rio Amazonas. Mas sejamos discretos, tem traíras-pixunas  por tudo que é lado explicou o jacaré, tentando manter a altivez.  

    Não foi difícil para a jiboia notar o indissimulável temor do jacaré quando ele pronunciou a palavra "traíra-pixuna". Tinha falado mais baixo, perdera o orgulho, parecera mais frágil, a arrogância tinha se transformado em timidez.

    A jiboia disfarçou e mudou de assunto.

— Essa viuvinha que sempre te acompanha é tua amiga?

É. Ela gosta de ficar ao meu lado. Come os insetos que me importunam e tem a vantagem de não falar. Ela não me incomoda. Não fala mas pensa.

— Pensa o quê, jacaré?

— Não sei, ora. Como vou saber?

— É, não tem como. E é verdade que, com esses olhos marrons redondinhos e brilhantes, ela tem cara mesmo de quem pensa. Não comeu mel, por isso não fala, mas pensa — completou a jiboia com ironia.

— E você comeu mel? — perguntou o jacaré de imediato.

 —Não, não gosto de abelhas, mas respeito muito os zangões.

— Tá bem, não gosta de abelhas, entendo. Agora vamos indo, jiboia, vamos logo.

   Os dois entraram juntos nas profundezas da floresta no momento em que desabava forte temporal, com trovões e raios. O ruído dos pesados pingos da chuva na folhagem competia com os gritos estridentes e interjeições de arapongas, tucanos e macacos em busca de abrigo. As águas lisas do lago se arrepiaram.

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   Eles cumprimentaram, com respeito, o jabuti, que, nas noites estreladas, se transformava na grande esfera branca imperando no espaço e que minguava e crescia em períodos regulares do ano. Desviaram de uma imponente sumaúma, o imenso tronco obrigava-os a uma larga volta. Um sapo-cururu coaxava, queixando-se do frio, apesar do calarão. Afastaram-se de um ninho de formigas — eram as terríveis tocandiras, cujas picadas provocavam dores horríveis e vômitos; certas dobras do couro do jacaré e o interior de sua boca eram vulneráveis a essas formigas.

 —Ainda pegamos um bicho desses.

— Claro, é só ele ficar dando sopa pra ver.

— Já estou até com saudades daquela vez em que voltamos para o formigueiro levando milhões e milhões de pedacinhos de carne de jacaré.

   O jacaré não ouviu a conversa das tocandiras, mas imaginava muito bem. Tentou pensar em outra coisa. Lembrou-se das perguntas da jiboia há pouco.

— E, a propósito, jiboia, aqueles dois macacos lá em cima, que se agitam e gritam quando você se move, são teus amigos?

— Amigos, amigos, não. São conhecidos.

—       O que noto é que por onde você vai, vão eles.

—       Pois é, jacaré, fazer o quê! Mas eles pelo menos falam, não são como a tua viuvinha.

— É, falam, mas pelo tom e pelos gestos não devem estar dizendo coisas agradáveis, jiboia.

—E daí? Deixa pra lá. Qualquer dia desses uma flechada de outros habitantes da floresta vai acabar com esses chatos.

O jacaré deu-se por satisfeito e continuou a marcha. Mas logo retomou a palavra.

— Faz como a aranha, tece uma teia bem forte em forma de escada pra que eu possa subir, assim te ajudo a pegar o macaco.

—Está brincando, jacaré? Uma colega que tentou fazer isso morreu enforcada na própria teia. E como é que eu ia construir uma teia? De cipó? Ia morrer, sim, mas de cansaço.

— Essas histórias eu conheço muito bem. Sempre têm relação com os mortos, jiboia.

— Pois é! Então por que me propõe isso?

— Por nada, estava brincando, é que tenho verdadeiro horror dessas aranhas que devoram o próprio macho; pena que os macacos não são como as aranhas, e olha que aqueles dois lá de cima são da espécie macaco-aranha.

     O jacaré, com o diálogo, sabia que provocava a nova companheira.

    No fundo, a raiva da jiboia pelos macacos era tanta, e se tornava ainda pior por vir dissimulada, que ela aproveitava qualquer motivo para idear cenas. A partir das palavras do jacaré, ela imaginou a fêmea do macaco-aranha sufocando até a morte o macho, surpreso. O macho despencando, trazendo agarrada aos seus longos braços a fêmea, também surpresa por não ter pensado na possibilidade de cair junto. Os dois maninhos no chão, alvo fácil dos urubus. Retirou-a do sonho uma saraivada de coquinhos de açaí seguida de risadas vindas do alto.

    O Rio Amazonas foi surgindo por trás da folhagem e dos troncos. Teriam ainda que andar e rastejar beirando a margem por algum tempo até o local previsto. Subitamente, os dois pararam. Um imenso cardume de piranhas subia lentamente o rio. Aguardaram a passagem da mancha escura e continuaram a marcha. Os enxadristas da floresta amazônica, com os respectivos reis derrubados no quadriculado do tabuleiro, davam início formal à Sociedade Jiboia & Jacaré.

    Um outro sáurio surgiu, de repente, no caminho.

— Espera um pouco que eu já volto disse o jacaré à jiboia.

     A jiboia ouviu com clareza o diálogo ríspido.

— Este pedaço de floresta me pertence, meu amigo.

Pertence o quê! — respondeu o intruso.

—       Você quer saber mesmo quem manda aqui? —perguntou, autoritário, o companheiro da jiboia.

Quero — respondeu o outro.

   Não houve tempo para mais diálogo. O sócio da jiboia lançou-se sobre o colega, o barulho surdo de músculo com músculo, carne com carne, mandíbula com mandíbula invadiu aquela parte da floresta. "Boa, jacaré, essa é a maneira de agir, manda pancada nesse ganancioso e atrevido", pensava alguém de penas brancas e asas pretas. Os dois monstros davam-se rabanadas e violentas mordidas. As mandíbulas estreitavam com força partes do corpo do adversário, soltavam aquele pedaço, trocavam por outro. Cada um buscava virar o rival de patas para o ar. Não demorou para que um deles ficasse de costas, o oponente agora o tinha sob controle. Não esperava, porém, que, em consequência de certeiro golpe de rabo do inimigo, se visse derrubado, ele próprio, agora, de patas para o ar. A situação se invertia. O que então estava de costas revidou também com o potente rabo e conseguiu se desvirar. Os dois repetiram essas rabanadas e troca de posições ainda uma dezena de vezes. refrega durou momentos angustiantes. Em certa hora, o estranho, em desvantagem, esfalfado e machucado, já perdendo a luta, retomou o caminho e, acovardado, desapareceu. O jacaré vitorioso não pareceu surpreso.

   Logo depois, foi a vez da jiboia.

— O que que você está fazendo aqui nas minhas terras? — perguntou do alto de um galho uma jiboia exibindo a pele recém-trocada.

—Estas terras são minhas —respondeu a sócia do jacaré.

   Num arrebato, a jiboia de pele nova pulou do galho da acariquara, postou-se em frente àquela que afirmava ser dona das terras e gritou:

— Repita, sua insolente e atrevida!

— Pois estas terras são minhas e pronto! — respondeu a colega do jacaré.

     A frase veio acompanhada de um magnífico salto em direção à reluzente jiboia, ela sim, atrevida. A torcida da viuvinha continuava, mas o apoio não era ao jacaré. “Tenta acabar com essa tua parente louca que anda enganando o meu amigo jacaré. Ou melhor ainda: devorem-se urna à outra, quem sabe então não sobra nenhuma de vocês, suas cobras asquerosas."

    O jacaré viu que sua colega apertava com tal força o corpo da adversária e mordia-lhe a cabeça achatada com tal violência, que a morte por constrição e sufocamento era iminente. Mas a que se jogara da árvore conseguiu se soltar. As duas, então, recuaram estrategicamente, enrolaram-se para o combate, o ódio nos olhos. Repentinamente, lançaram-se aos ares num pujante bote. O choque foi tremendo. Um trançado se fez ainda no ar. Goela contra goela, presas contra presas. Na queda estrepitosa, com folhas esvoaçando e folhagens arrancadas do chão com brutalidade, a trança se apertou ainda mais, as duas cobras transformadas num único corpo que se mexia frenético. O nó se abriu mais uma vez. As duas recuaram, enrodilharam-se e repetiram o encontrão nos ares. Os corpos cerrados rolavam, se chocavam contra as árvores, esmagavam plantas. Bocas mordiam-se, olhos chamejavam.

    A torcida simiesca no alto das árvores ia animada. "Ela tá passando um cortado lá embaixo. Dá-lhe, cobra nova, isso, aperta com força, sufoca, ensina pra ela que não deve ficar querendo comer a cria dos outros. Acho que ela está perdendo a luta. Pois eu, infelizmente, acho que não, ela parece vencer. É, é, tem razão. Então vamos fazer caretas pra ela, pelo menos isso."

    O nó de carne lisa e fria desatou-se de novo. Desta vez, entretanto, a jiboia de pele nova, exausta, derrotada e vexada, baixou os olhos e, inesperadamente, deslizou para as profundezas da mata.

    Uma anta passou em desabrida carreira rente ao focinho do jacaré.

—Viu a velocidade que o tapir pode atingir? É por isso que não consigo agarrar um bichão desses. No momento em que surgiu ali detrás daquela árvore, a anta me pareceu negra, depois vermelha, depois branca, acho que foi por causa da rapidez com que despontou e desapareceu.

    — Pois pra mim, jacaré, ela pareceu meio sem cor.

Nem vi direito, só ouvi um tipo de relincho.

   — Isso tá me cheirando mal. Não sei. É que uma noite dessas eu vi uma anta, de pelo bem escuro, morta, numa poça de sangue.

   — E daí, jacaré?

   — Nada, nada,

   — Se você se fiar só nas sensações, acaba não pensando direito. E se torna um tipo de anta.

   — Tá, jiboia, tá. Obrigado pela lição.

   —De nada.

      Nenhum dos dois comentou a luta que tinham travado havia poucos instantes. O corpo de ambos, porém, doía de urna ponta a outra. Urna dor que só eles podiam sentir. Aquela dor nem chá de andiroba curava.

      A chuva cessara.

A imaginação do sagui-leãozinho voava. Os diálogos inventados se davam em função dos traços crispados dos dois índios.

   — Nós estamos dando voltas. Por este mesmo lugar já passamos três    vezes.

Mucura não deve ter ouvido.

   — Ouviu, Mucura? Já passamos por aqui três vezes.

   — Eu sei, Bakororo, eu sei, ouvi muito bem. Também notei esse cipó mata-pau, é o mesmo, já vi três vezes. Pra que lado devemos ir então?

   O sagui não teve nem coragem de fazer com que Bakororo respondesse. Veio-lhe à cabeça a história da macaxeira mensageira ouvida nos bons tempos, quando ainda não tinha se perdido para sempre do bando de saguis.

   As raízes da macaxeira entravam terra adentro e levavam mensagens a outros bichos. Da terra brotavam os sentidos. Bastava prestar atenção no solo se abrindo. Mas como explicar isso aos dois índios?

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