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Capítulo 24

     A viuvinha . impacientava. "Já perdi muito tempo desde que começamos a andar com essa jiboia pra lá e pra cá. Não consigo mais ficar perco do meu hospedeiro. Estou ficando faminta, acho que vou dar no pé. Se se alimentasse de mel, ele talvez pudesse oferecer carinho, ser generoso. Mas com essa dieta de carne e sangue, não era de se esperar nada mamo desses jacarés horríveis.”

     No cardume de traíras-pixunas a conversa ia por outras veredas.

     — Se tivéssemos logo decidido pelo combate, não teríamos perdido tempo, nem passaríamos. pela humilhação de só sermos ouvidos com o auxílio dos bagres, que tampouco são nossos amigos — disse a traíra que propusera medidas fortes assim que viram a jiboia e o jacaré juntos pela primeira vez.

     O líder, os que haviam proposto o diálogo e os que aspiraram à liderança mantiveram o silêncio. Aquele que, certa vez, conseguira acalmar os jovens brigões contando-lhes histórias do sol e da criação do mundo, falou, em tom professoral: "Devemos bater-nos pela integridade da floresta amazônica. Rios, riachos e igarapés são o nosso universo. E eles só existem dentro de uma floresta preservada. Nossa dignidade depende disso. O destino de toda a região amazônica está ao nosso alcance. Infelizmente, temos que lutar. Mas devemos sempre nos bater para que a proposta de paz se sobreponha a todas as outras. É por aí que devemos começar e, espera-se, acabar. Vaidades, raivas, ódios e preconceitos devem ceder lugar ao entendimento, à justiça e à paz. A floresta amazônica deve ser urna floresta cada vez mais fraterna. Nós, as traíras, costumamos vir com julgamentos já feitos. Fiamo-nos nas aparências e no que dizem por aí. E necessário fazer um julgamento próprio, expor as nossas ideias, discuti-las, amadurecê-las, prontas a modificá-las caso surja outra melhor. Ideia não tem dono. Ideia é o resultado do saber acumulado durante séculos, acumulado por todos."

    A que costumava falar em tom professoral contou, ainda, a história da cobra e do sapo passada pelos índios lá das bandas do Rio Negro.

     Era de uma serpente que havia se queixado ao sapo, dizendo que ninguém a amava porque tinha veneno. Ele não, sorte dele, acrescentara a cobra. O sapo respondeu que era verdade, ela destilava veneno mesmo, e, por isso, os que fossem picados por ela morriam. Ela replicou que não era bem assim e propôs uma experiência. Morderia um bicho, sorrateiramente, o sapo ia junto e passaria a impressão de que fora ele o autor da picada. Assim fizeram.

     

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A serpente mordeu um lobo-guará, à noite, e rapidamente se escondeu. O sapo quedou-se estático. O lobo-guará deu um grito, mas tranquilizou-se ao ver o sapo. Na noite seguinte, a situação se inverteu. O sapo mordeu a pata do lobo, escondeu-se, rápido, a serpente, ao contrário, ficou ali parada. O lobo-guará fugiu ganindo, gritando que uma serpente venenosa o picara.

     Segundo a história contada pelos índios do Rio Negro, e trazida pelo boto para o reino dos bichos, consta que o lobo-guará morreu. De mordida de sapo sem veneno. As traíras ouviram a história caladas, e caladas permaneceram.

    Os bagres, por sua vez, mantinham-se atentos, mas, às vezes, surpreendentemente relaxados. Faziam sinais uns para os outros, como códigos. Estavam certos da vitória. Porém, davam a entender que iam tocando a vida, aquele encontro ali na beira do rio era apenas um episódio. Não queriam mal nem às traíras nem às jiboias, nem aos jacarés. Pragmáticos, seguiam o mínimo exigido pela natureza, sem ansiedade nem ambições. Sabiam, como todos, a origem do fogo, dos bichos, dos astros, o boto estava aí para contar. Ele tinha, até, relatado, fazia pouco, a origem da lua, segundo diziam lá para o lado dos Solimões. A lua era irmã do sol. Viviam na mesma casa até que a lua cresceu e quis ter filhos. Como não cabiam todos na mesma casa, a lua foi para o céu, para onde também acabou indo o seu irmão. Resolveram aparecer sempre em momentos diferentes, pois ela teve e terá muitos e muitos filhos e, mesmo no céu, não há lugar para todo mundo. E por isso que a lua, à vezes, aparece redonda, cheia, depois vai decrescendo até desaparecer, em seguida cresce de novo, e assim vai enchendo o céu de estrelas. Essa era a vida da lua, eles, os bagres, tinham a deles, era só viver e pronto.

    Um monumental tronco de mogno, arrancado do chão pela violenta tempestade da véspera, veio descendo lentamente o rio. Ainda conservava as folhagens verdejantes. Dezenas de garças brancas enfileiradas usavam a tora como transporte, uma ariramba pousada em um dos seus galhos coçava o interior das asas com o bico, trepadeiras de folhas largas e gordurosas formavam uma borbulhante cauda vegetal. O ti tí ti das níveas pernaltas se ouvia a distância.

    — Nada como ficar só à espreita de um peixinho desavisado.

    — E, e sendo carregada assim num passeio pelo Amazonas.

    — E ficar paradinha, uma pata levantada, a brisa soprando nas penas.

    — E a certeza de que comida não falta, é só esticar o pescoço e abrir o bico.

      Já o martim-pescador conversava com as suas próprias penas.

   — Assim, vamos logo dar um mergulho e engolir alguns lambaris. Depois vamos à procura de um cardume de piranhas.

    O bagre que logo no primeiro encontro dissera à jiboia e ao jacaré "em nome dos meus irmãos, gostaríamos de conversar sobre a caça que vocês têm guardada aí no barranco", continuava esperando. Exigia a divisão da caça, reclamava do jacaré e da jiboia um comportamento de seres superiores, invocava a concórdia inerente aos habitantes das florestas amazônicas. Suas palavras iniciais tinham soado belicosas, sim; seu significado, porém, remetia aos predicados adormecidos sob o húmus do vezo. Os dois répteis tinham que aprender. Ele próprio se lembrava muito bem do episódio da época de colégio. O inspetor da escola até lhe tinha dado um pito quando era ainda aluno. Acabara aprendendo.

   — E isso lá é coisa que se faça, meu amigo! A frase tinha troado como um trovão. A resposta do aluno tentou trazer bonança a ares definitivamente procelosos.

  — Mas eu fiz sem querer, senhor inspetor.

   — Esta escola não é lugar para exercer a sua individualidade à custa dos outros. É uma instituição onde se aprende a ser cidadão, o que significa, justamente, levar em consideração os outros, sempre. A bondade e o desejo de conhecimento do mundo dos outros que existem dentro de cada um de nós têm que ser realçados, e não sufocados. Para isso, a escola. Sei que você, corno aluno, me compreende, e conto com a sua ajuda. O saber deve auxiliar na emancipação e melhoria da vida dos animais como um todo e não servir de instrumento para a dominação de uns sobre os outros. O conhecimento que a instituição escolar produz tem um raio de ação universal e exerce um papel social. O conhecimento é libertação. Você, como aluno, é o receptor e o emissor principal de tudo o que se ensina, pensa e produz aqui; logo, entenda a sua importância e responsabilidade. Mire-se no exemplo dos índios que vivem nas florestas.

    O sermão era suficientemente denso e profundo; mais, era a tal ponto compacto e consistente — e justificado! —, que não dava para responder o que quer que fosse sobre a acusação implícita. A única maneira seria sumir, se isso fosse possível sem mágica. Negar já não adiantava. Desviar um pouco a culpa, talvez, daí a pergunta.

    — Mas quem foi falar que eu escondi toda a sobremesa?

    — Isso não tem importância agora. Entendo esses desejos e essas travessuras, espero tratar-se de uma brincadeira. A minha obrigação é educar. E, no particular, só me resta aconselhá-lo.

   — Eu vou devolver tudo, inspetor.

    O inspetor mantinha uma cara entre compreensivo e despreocupado, como se acontecimentos daquela natureza fossem corriqueiros. Impossível fugir. Impossível fugir, não do silêncio que se instalara, mas de si próprio. A culpa iria junto, em qualquer esconderijo ou refúgio.

   — Eu sempre soube disso, meu jovem. Eu sempre soube que você ia devolver tudo. Os bagres nascem assim. Pouco a pouco, vão entendendo que não dá para viver só pensando em si próprios. Torna-se impossível viver juntos mantendo esse egoísmo. E sabe qual é a maneira de evitar que sentimentos egoístas se desenvolvam? Vivendo num cardume organizado, tolerante, compreensivo e justo, sem perder o direito à individualidade e à diferença, que devem, a qualquer preço, ser garantidas. Nós, os professores, também aprendemos com vocês sempre. Vocês nos dão lições, obrigam-nos a não esquecer certos aspectos da vida.

    O inspetor deteve-se. Arrumou a pasta, a mesa, a régua e o compasso. Um silêncio grosso e pesado desceu dos céus. Quanto tempo tinha durado aquela ausência de ruídos, sons e fonemas?

    O bagre deu-se conta de que pensava há um bom tempo sozinho. Mexeu a cauda como a relembrar ao jacaré e à jiboia que ele ali estava à espera da resposta. Os dois da margem se falavam baixinho.

   — Esse bagre parece que não tem ansiedade, não parece, jiboia?

   — Se parece que não tem ansiedade, é porque criou o seu universo em harmonia. Assim é fácil. O mundo em que ele vive concorda com ele, e então ele é feliz.

   — Deveríamos tentar criar um mundo só nosso.

   — E dá, jacaré? E dá?

   — Se não dá, então é ir buscar a aprovação dos que consideramos como parte do nosso universo.

   — E acha que é fácil conseguir, jacaré?

   — Chega, jiboia, chega. Você já está me irritando.

   A jiboia calou-se. Não bem por medo. Era momento de reflexão, não mais de medo.

   Os macacos faziam caretas lá em cima e gritavam. "Vocês ainda estão na fase dos sacrifícios para os deuses, nós não, seus atrasados, vocês têm cara de bichos das cavernas."

    Alguns acarás se aproximaram, curiosos, vinham abraçados, pareciam felizes, conversavam, nadavam lentamente, como empurrados por força desconhecida, tal a discrição com que as nadadeiras dorsais se moviam. Trocaram umas palavras.

   — Estranhos esses bagres, não?

   — Muito. Estranhos e feios.

   — Horríveis.

   — Não queria ter essa cara.

   — Nem eu.

    Os acarás olharam o bagre e seguiram o passeio. Só pararam, às súbitas, porque um cardume de piranhas se aproximava. Todos permaneceram imóveis até o total desaparecimento do cardume dos terríveis peixes.

   A viuvinha ainda não tinha voado. Mas não ia demorar. Um graxaim apareceu entre as folhagens. Sua cabeça repetia-se numa sombra desenhada na areia e no reflexo de uma poça d'água. O cachorro-do-mato de três cabeças só podia ser um aviso. Ele era guardião de dias de penúria e fome. Melhor mesmo cair fora. O pássaro branco de asas pretas alçou vôo, desviando das árvores, em direção à margem oposta do grande rio.

      Bakororo e Mucura comiam frutas espalhadas pelo chão. Calados, como sempre. Menos na cabeça do sagui-leãozinho.

    — Um dia vamos atravessar o rio.

    — E pra quê, Mucura?

    — Pra alguma coisa. Pra morrer ou pra viver melhor.

    — Mas então vamos atravessar o rio com urucum na cara.

    O sagui se sentiu reconfortado, quase orgulhoso, com a afirmação que Bakororo acabava de fazer. A manhã iluminou os dois índios postados diante do grande rio.

    — Acho que do outro lado é melhor mesmo.

    — Um dia vamos atravessar, Mucura. Vamos precisar de casca de palmeira.

     — O nosso povo está lá do outro lado, Bakororo?

     — Não sei, mas se concordar, amanhã atravessamos. O diálogo só se desfez na cabeça do sagui-leãozinho porque ele se assustou com o grito de uma arara-canindé.

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