Profº Godofredo de Oliveira Neto
Ana e a margem do rio
Godofredo de Oliveira Neto
Capítulo 1
O som se enrolou nos pilares de madeira, bateu na copa das árvores, deu a volta nas folhagens, retomou ao ponto de partida, se recompôs, se organizou, tornou fôlego e lançou-se novamente pelos espaços, furou as telhas esverdeadas pelo limo, aninhou-se nos vãos triangulares das toras de itaúba mal empilhadas, desfez a fileira de andorinhas pousadas no fio da luz. Os agudos zumbiam nos ouvidos por mais tempo, os graves ecoavam, soturnos, em toda a cabeça.
Eu soube, depois, no fim da aula, que para os meus três colegas Josimar, Galdino e Felício — aquela música saída do aparelho de som trazido pela professora estrangeira era simples barulho de mau gosto. "O troço não funcionou direito, a pilha estava se acabando, às vezes tocava baixinho, de repente aumentava como se tivesse enlouquecido", me disse Galdino, guardando o caderno na pasta preta de plástico. Pensei em responder que o aparelho não era a pilha, a professora tinha ligado o fio na tomada, eu vi, mas preferi calar, não tinha a menor importância. Até entendo e admito que o Galdino não goste, é problema dele, mas que a música deu uma coisa aqui dentro no peito deu. "Beethoven", disse a professora, e escreveu o nome no quadro. Eu conhecia o autor e parte da sua música, pois a irmã Gicélia trabalhava ouvindo música clássica e sempre me explicava os detalhes dos arranjos musicais e a maneira de identificar os autores. Ela foi também a minha professora de piano e xadrez (que jogávamos escondidas, não sei por quê). Os meninos não tiveram esse tipo de educação. No abrigo dos franciscanos a instrução era feita única e exclusivamente em sala de aula.
Logo nesse primeiro curso no galpão da serraria a professora estrangeira solicitou que escrevêssemos, em capítulos, histórias contadas por nosso povo através dos tempos. Deveríamos redigir o que ela pedia no caderno de capa brilhante com desenho do mapa do Brasil, distribuído com esse objetivo. Ao término do semestre deveríamos devolvê-lo preenchido. Galdino ponderou, na saída, que a gente devia demonstrar boa vontade com a organização missionária. "Quando o período com a estrangeira terminar a gente vê. Se não tiver sido possível escrever, azar, devolvemos o caderno em branco. Ela não pode dizer nada, e, afinal, a nossa presença ali não é obrigatória nem essas gulas são realmente regulares e oficiais", considerou. Mas devíamos tentar, sim, fazer o que nos pediam. Foi o que decidimos, os quatro. E a gente sabia que ia acabar tendo que escrever histórias de bicho. "Não tem jeito, índio só pode mesmo escrever histórias de bichos e falar sobre a floresta, só sabe isso", ainda disse Galdino sorrindo. E Josimar lembrou que, de qualquer maneira, antes não tinha diferença mesmo entre os bichos, os homens e as plantas. Nesse dia fomos, os quatro, comer matrinxã de panela na casa de Galdino.
Resolvi, então, escrever uma lenda que sempre ouvi de minha mãe, lenda que ela dizia ter ouvido da minha vó, e assim para trás, até as origens da nossa nação. Eu escutava aquela história maravilhada e tomava cuidado para que mamãe repetisse exatamente os mesmos detalhes. "Não, mãe, não foi bem assim, está errado, conta de novo", eu resmungava. Ela, então, tentava lembrar-se dos pormenores que descrevera da última vez. Alisava carinhosamente os meus cabelos e dizia "sim, começo de novo, bonita Ana, Ana bonita, começo de novo". Até os meus treze anos (quando ela morreu), minha mãe contava essa longa história da jiboia e do jacaré num português limitado, repleto de interferências da sua língua e com erros. Eu sentia uma ponta de vergonha quando outras pessoas a ouviam falar.
Quando viemos para o convento — eu tinha, então, cerca de dois anos —, fomos morar no quarto dos fundos, atrás de um jardim com goiabeiras e plantas de folhas largas. Meu pai não conheci. Já lá se vão quinze anos desde a minha chegada ao convento. Era na rede de tucum, à sombra dessas goiabeiras, principalmente, que eu mergulhava naquele mundo onírico de bichos e plantas embalada pela voz melodiosa e carinhosa de mamãe. Uma viva emoção me invade só de pensar que vou passar para o papel imagens impregnadas do perfume da minha infância e assim perpetuar uma parte da história do povo Nauá. Minha mãe foi a última representante autêntica dessa nação indígena.
Sei que, na lenda, irá também, necessariamente, muito de mim em pedaços de personagens, trechos de rio, pétalas de flores e em fragmentos de reações animalistas humanamente plasmadas. Tudo bem. E vou tentar fugir, no texto, do sonho que sempre vem, em que me vejo cercada por animais da floresta que obedecem ao meu canto, rios que escoam sob meu comando, raios que se fixam no céu escuro por minha simples ordem.
Quando vim da serraria para casa cruzei com o louco Palmiro. Fingi que não vi e ele, claro, não me viu mesmo. Ele não fixa os olhos em ninguém. Palmiro, dizem, fugiu de um asilo de Rio Branco. Ele planta macaxeira em qualquer hora e lugar. Na rua, no quintal das casas, na praça central da cidade. Diz que com a sua macaxeira mensageira está enviando recados para o resto do mundo através da terra. Hoje à noite, às dezenove horas, vou com Fabiana Suzan ao cinema do salão paroquial. Haverá, depois, debate sobre a criação do Estatuto dos Povos Indígenas. Na saída, como sempre, Fabi vai querer comer açaí com tapioca na barraquinha ao lado da igreja. Escreverei a história do jacaré e da jiboia em casa, à noite, quando os ruídos da floresta diminuírem.