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Capítulo 23

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     Ontem, depois do almoço, conversei pausada e longamente com o Galdino. Ele me contou algumas das suas inseguranças, confessou que tinha urna ligeira atração por Ellen Marinalva (eu sabia!), mas ela não quer nada com ele. Me pediu perdão. Confirmou que gostava de mim, mas de outra maneira. Se tinha falado que me amava, era meio de brincadeira e para chamar a atenção. Tomara que Ellen Marinalva acabe gostando um pouco dele!

    Hoje de manhã, por volta de dez horas, vieram a minha casa um senhor falando um português macarrônico e três rapazes. Todos de terno e gravata. Os três mais jovens eram brasileiros, os carapanãs tinham picado pra valer as bochechas dos quatro.

    A notícia se confirmava. Prefiro nem escrever sobre os elogios e palavras de incentivo. Até por constrangimento. Insistiram muito para eu ir almoçar com eles, ia junto um assessor do prefeito. A insistência foi tanta, que acabei aceitando. Fomos ao restaurante O Amigo, praticamente o único da cidade com nome de restaurante. Nem os três brasileiros pareciam saber que muitos colonos nordestinos vieram para cá no auge da exploração da borracha. No O Amigo, justamente, os dois pratos do dia eram carne-de-sol com macaxeira e bobó de camarão. Mas foi pedido para todos pirarucu-de-casaca e rabada ao tucupi. O assessor do prefeito disse que a prefeitura quer montar na cidade mais uma fábrica de óleo de copaíba, falou do aumento da exportação da pupunha para o sul, do urucum e da folha da pimenta larga exportados pelos Yawanawa para as fábricas de produtos de beleza dos Estados Unidos. Eu fui ignorada quase o tempo todo, não disse uma palavra e comi pouco. Só no finalzinho do almoço é que vieram os elogios. O assessor do prefeito se derramava, me comparava, em importância, com as fábricas que pretendia instalar na região. "Ela vai para o exterior", disse o estrangeiro. O pouco que eu tinha comido quase saiu de volta pela boca. "Eu ainda não sei", respondi baixinho. "Querem fazer da Amazônia uma reserva mundial, tirar a soberania brasileira dessa região, roubam os remédios dos nossos pajés, o jaborandi tá até curando glaucoma, vê se defende a gente lá fora, Ana, você que é uma figura excepcional e elogiada no Brasil inteiro e até no exterior." Ofereceram-me um estágio de um ano num colégio da universidade de Nova York, com tudo pago, além de uma bolsa de mil e duzentos dólares por mês (nem sei quanto dá isso em reais). Um dos homens, de terno azul e gravata vermelha, trazia uma bolsa a tiracolo. Disse que aquilo era um computador, e o trazia para mim. Eu respondi que por ora não queria, só se os meus colegas de escola também recebessem. O homem ficou de ver.

     Eu teria que passar, antes, quinze dias no Rio de Janeiro. Um dos rapazes não parava de grunhir que, caso eu estivesse de acordo, a documentação estaria pronta em poucos dias. Deveria haver necessariamente a autorização do juizado de menores e do Ministério das Relações Exteriores.

     Tinham vindo de São Paulo a Xapuri especialmente para falar comigo. Achei impressionante. Para quê, meu Deus? Vão permanecer até depois de amanhã de tarde no hotel da cidade. Eu tinha tempo para pensar (pouco tempo, deviam ter dito!). Caso a resposta fosse positiva, eu deveria viajar para o Rio de Janeiro dentro de, mais ou menos, um mês.

    Assim que se despediram, atravessei a cidade, trôpega e sôfrega, e corri ao convento. Irmã Gicélia já sabia de tudo. Insistiu para que eu fosse. Disse que se empenhara para isso junto às autoridades do Acre e do Amazonas, bem como a organização missionária estrangeira.

    Para ela, era indispensável a criação de fóruns e tribunas de onde pudéssemos nos fazer ouvir ainda mais e de onde se pudesse lutar pala dignidade dos habitaras da floresta amazônica e das populaçôes pobres do Brasil. Eu poderia desempenhar hem esse papel. A imprensa em geral estaria ao meu lado e me daria espaço. Eu não poderia jogar fora essa oportunidade.

    Saí do convento aturdida c confusa. E hesitante. Lembrei que  tinha deixa doa televisão ligada desde de manhã, quando . quatro homens chegaram. Tinha abaixado totalmente o volume, ainda bem. Mas a conta da luz ia aumentar. Caso eu aceitasse o convite, o Rio de Janeiro e São Paulo, que volta e meia apareciam na tela, poderiam ser vistos ao vivo. Dependia só de mim. Imaginei aquelas duas grandes cidades brasileiras povoadas pelas naçê. Jaminawa, Kaxarari, Apurinã, Arará, Kampa, Kzrapanã, Nauá, Parintim, Poyanawa e tantas outras da região amazônica.

     Lembrei de broncas que eu tinha levado das irmãs, dos semões. que uma delas me passou quando, ainda pequena, eu roubei a sobremesa das minhas colegas, e de outras situações que até hoje me encabulam. Com todos esses defeitos, como agora eu poderia ser alguém com as qualidades que estavam me atribuindo? Era sobre uma história escrita, sim, uma ficção, corro diz a professora, mas romance não é vida? Para me acalmar, fiz um chã de folhas de graviola.

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