Profº Godofredo de Oliveira Neto
Ana e a margem do rio
Godofredo de Oliveira Neto
Capítulo 8
Um bando de maracanãs pousou, ruidoso, na ramagem superior de uma grande árvore, dava para ver com clareza as carícias e cafunés, os bicos se tocando, bicando penas com suavidade, as pequenas garras coçando costas e ventres esverdeados. Os olhinhos marrons, redondos e brilhantes da viuvinha espiavam a cobra. Ela acompanhava tudo com atenção e matutava. "Claro, agora ela vai se martirizar, deve estar lembrando de coisas da infância, do gênero 'não faço mais, pronto, desculpe'. Recordações de fraquezas da época de menina, paixões não correspondidas, sensação de abandono, choros, raivas. Agora é fácil! Essas cobras, aliás, são sempre as mesmas através dos tempos. Sempre as mesmas histórias. Se o jacaré pudesse ao menos ler o que se passa na cabeça dela! Mas se nem na minha ele consegue!"
A jibóia, que continuava a acompanhar o jacaré, após ter posto para correr a parente atrevida e ousada, olhou para a grande manifestação de afeto daquelas aves verdes e barulhentas. Ela também já experimentara esse tipo de alegria e carinho. É bem verdade que nem sempre tinha acontecido como gostaria. Lembrava-se da adolescência, das brigas e tristezas por amores não correspondidos. Ela queria o amigo da amiga. Só que ele não, ele queria, justamente, a outra. Recordava-se até do diálogo.
— Eu gosto de você, mas gosto mais dela.
— Mas você disse que gostava de mim, até jurou.
O amigo fora de uma frieza e objetividade nunca vistas antes. Não custava, por isso, relembrar-lhe os amores jurados tempos atrás.
— É, eu jurei, mas agora conheci a jibóia tua amiga lá da curva, nos entendemos muito bem, e vamos ficar juntos. E eu sei que o que você mais tem são pretendentes, todos os meus amigos te querem, não entendo por que essa momentânea paixão por mim agora, antes você gostava de mostrar indiferença.
Ele tentava confundir uma jibóia traída e fragilizada. Misturava as atitudes dela em relação aos outros com os sentimentos por ele. Ele merecia a meia-verdade. Não era verdade inteira porque o sentimento de paixão só a invadira no momento em que se sentiu rejeitada. Por isso meia-paixão.
— Não é paixão, é que eu não entendi por que você me trocou por outra, só isso.
Ela confessava.
E a viuvinha ironizava. "Coitadinha, tão boa. Urna boa águia, com corpo de onça, asas monumentais, um bico descomunal e garras imensas, bem que poderia surgir agora, de repente, e te levar pelos ares para servir de comida aos outros pássaros, sua jibóia desmancha-prazeres."
Seguiram-se, naquela conversa com o jovem, palavras rudes, até alguns palavrões, e urna baita de urna raiva. Mas raiva de quê? Do amor não correspondido ou do orgulho ferido por ter sido passada para trás pela amiga? Foi uma professora que lhe tinha dado conselhos. Ela interrompeu uma explicação em que falava de Anhanga-Porantim, de Tandav-U e de Baira, e enumerava os feitos dos heróis da mitologia dos índios.
A mestra fora, como sempre, didática e clara. Falou do choque entre o "eu" e os "outros" como algo inevitável mas administrável se vivido com distanciamento e prudência. Na época, não tinha ficado muito óbvio para aluna. Tanto assim, que ela se vira na obrigação de esclarecer para a professora o que estava sentindo.
— Mas os dois, a minha amiga e ele, me fizeram de boba, professora!
— Boba por quê?
A professora parecia extremamente surpresa com areação emocional da aluna. A resposta da discípula, então, foi de pouco significado.
— Porque sim!
De resposta não tinha muito. A professora continuou.
— Pense bem. O importante é a felicidade. Se eles forem realmente felizes, não adianta você forçar as coisas.
E seria até injusto. O amor não precisa ser correspondido. Como sentimento, ele existe por si só. No fundo, a professora é que parecia estar sendo injusta ao não tomar partido em favor da aluna. Suportar a sensação de abandono e de vazio vinha sendo penoso. A professora ou era cega ou insensível.
— É, mas não consigo suportar, professora.
A impressão da discípula machucada era de que felicidade devia ser vista apenas como uma noção teórica, inexistente na prática.
A resposta da mestra não demorou.
— Honestidade e justiça nunca passam de moda, pelo menos não deveriam.
Os macacos lá no alto falavam de heróis. Um parente, contava a lenda, tinha estrangulado uma onça usando apenas um dos braços, arrancado uma por urna todas as nove cabeças de um horrível bicho que vivia no fundo do Amazonas e abatido, no voo, com uma vagem de ingá, um enorme gavião que aterrorizava o bando de macacos. Verdade ou mentira, pensavam no parente herói. Isso dava forças para continuarem a luta contra a jiboia.
A professora repetiu as palavras lentamente, "honestidade e justiça".
— Está ouvindo? — insistiu ela. — Se não, vou contar histórias dos índios, descansando numa rede de tucum.
— Ainda riu.
— Estou ouvindo, professora. Estou ouvindo. Ela, então, continuou a lição: — Somos animais superiores, animais que pensam. Pensam, com letra maiúscula, e, por isso mesmo, pensam nos outros. Nas outras espécies, nos outros grupos, nas outras nações. A natureza é de todos e para todos. A água, o ar, a terra, os alimentos, a floresta amazônica inteira. Também os risos são para todos.
A jiboia olhou mais uma vez os periquitos na árvore. Ela teria ouvido, na sua vida, a voz da professora?
Imaginou a troca de opiniões entabuladas pelas aves esmeraldas. — Olhar a floresta aqui de cima dá um prazer que não tem tamanho. — E imaginar que ela é toda nossa aumenta ainda mais o prazer.
— A cor das nossas penas realça a gradação do verde amazônico. — Ser periquito é alcançar o máximo de alegria. — Vamos fazer um cafuné geral para festejar a nossa existência. O jacaré arrancou a jibóia da meditação com os grunhidos "vamos indo, jibóia, vamos indo". O casal de macacos se agitou e começou a gritar. Os dois sabiam da dificuldade para se fazer ouvir com clareza lá embaixo, mas valia a pena como desabafo. "Cobra, braço, braço, cobra, de corpo sem braço, da cara de porco, sem dobra no corpo." O jacaré sentiu a agitação sobre a sua cabeça e observou: — Você notou que, a cada vez que você se mexe, duas sombras com braços, pernas e rabos se agitam lá no alto? E não acha estranho que de vez em quando chovam frutinhas na nossa cabeça?
— Não, jacaré, não notei nada. De qualquer maneira, logo, logo, como eu já disse, os índios vão dar um jeito nessas aranhas com cara de macaco. Esses bichos vão acabar assados no fogo.
A viuvinha também tinha os seus heróis, como os macacos. Pelo menos, os seus sonhos. Se pudesse, sua cabeça seria a de um gavião, seu corpo alado teria a forma da onça-pintada. Poucos se aventurariam a enfrentá-la, e os que ousassem sucumbiriam à sua força. Ela esqueceria a fome. Sua simples aparência era a garantia de poder eterno. Mas ela sabia que não era bem assim. Devia se contentar com a condição de simples viuvinha. A chuva voltou a cair com força. Mas o aguaceiro durou pouco. Bakororo e Mucura conversavam no pensamento do pequeno animal que os acompanhava pelo alto das árvores.
— Segura a borduna, Bakororo, pega o filhote de anta ali perto do açaizeiro.
— Vou pegar, vai fazendo fogo.
Não demorou para que leve fumaça seguida de chamas hesitantes brotasse do atrito de dois galhos. E a caça logo assava espetada num galho verde.
— Essa anta é boa de comer assim torrada, mas bom mesmo seria encontrar gente da nossa tribo.
— É, Bakororo, isso sim é que seria bom. Apesar da imaginação do sagui-leãozinho, os dois índios comiam calados.
— Vou pegar, vai fazendo fogo.
Não demorou para que leve fumaça seguida de chamas hesitantes brotasse do atrito de dois galhos. E a caça logo assava espetada num galho verde.
— Essa anta é boa de comer assim torrada, mas bom mesmo seria encontrar gente da nossa tribo.
— É, Bakororo, isso sim é que seria bom. Apesar da imaginação do sagui-leãozinho, os dois índios comiam calados.