Profº Godofredo de Oliveira Neto
Ana e a margem do rio
Godofredo de Oliveira Neto
Capítulo 13
Josimar disse hoje que também não vai entregar coisa nenhuma para a professora no final do semestre. Ele acha que a sua história nunca ficará boa, que ele mente ao escrever, que frei Leandro, um dos seus antigos professores, se vivo fosse, também não ia gostar e que "ele não dá para contador de histórias". Acho que todos têm algum pudor em narrar o mundo em que vivem, temem que alguém os identifique ali no meio da multidão. Se ele acha isso, está redondamente enganado. Ele não é alguém na multidão. E a própria multidão. Mas, pelo visto, não vai mesmo devolver o caderno. A professora não devia ter dito que era opcional entregar o texto, que era urna simples sugestão. Os três se sentem, assim, desobrigados.
"Escrevendo, vocês vão fixar e precisar a civilização (disse a "vossa" civilização), cujas qualidades devem amar e respeitar, para que as outras também a respeitem", discorreu a professora, já quase no final da aula, com semblante austero. Fica difícil se fazer respeitar se a gente mesmo não se respeita. Nisso ela tem razão.
O problema maior é que nós quatro não nos sentimos realmente índios, a nossa cultura indígena é algo postiço, a gente nem sabe falar direito a língua dos índios, a professora e a missão é que insistem, e a gente joga o jogo. Galdino diz a toda hora que se nós não tivéssemos cara de índio, a missão nem ligaria para a gente. E como uma fingida queda-de-braço de uma civilização contra a outra, com vitória anunciada.
Felício apareceu. Mal me olhou. Eu tinha decorado algumas frases que pensava lançar na cara dele, mas pensei bem e achei melhor fingir que a Ellen Marinalva nem existia.
A professora não compareceu. No seu lugar, veio um professor de uma universidade do Rio de Janeiro que trabalha com línguas indígenas. Usa óculos com aros dourados, fala baixinho. Acabou dando uma aula sobre as características do português do Brasil. Parecia evitar todo tipo de conflito. Buscava o diálogo, falou de tolerância, preconceito e de salvaguarda de identidade. Já quase no final da aula, perguntou se eu era a Ana (só tinha eu de mulher!). Eu disse "sim, senhor". Ele ficou me olhando, fez que sim com a cabeça, como se tivesse feito uma fantástica descoberta, e se despediu.
Encontrei-o um pouco mais tarde, na saída do barracão do escritório da serraria. "Todos esperam muito do seu romance, Ana", disse rapidamente. A história do jacaré e da jiboia tinha virado romance! "Mas se quase ninguém viu o texto, só a professora uns pedaços!", repliquei. "E nem é um romance, é a história que minha mãe contava", ainda emendei. "Você está com o texto aí?", perguntou, então, o jovem professor do Rio, já se sentindo mais íntimo. Como meu gesto positivo com um movimento da cabeça, solicitou autorização para "dar uma olhada". Entreguei o caderno aberto nos últimos capítulos. Ele se sentou no banco que havia ao lado da porta do barracão. Eu permaneci em pé. "Justamente hoje, podia ter vindo com outra roupa", pensei.
Ele levou um bom tempo lendo, voltava as páginas, relia, interrompia a leitura, e me olhava, alternadamente, esboçando um sorriso. Devolveu o caderno, dizendo: "Parabéns, Ana, você tem futuro. E muito. Acho também que é importante para você aprender a lidar com um computador, vou ver se arranjo um." Despedimo-nos na hora em que um bando de araras passava ao longe. Vou começar um dos próximos capítulos com um bando de araras vermelhas.
Galdino, numa hora em que esteve no escritório da serraria para assinar um documento, conseguiu ver rapidamente na tela do computador o título de um artigo que o professor estava escrevendo. Copiou num papel para mim. Intitulava-se "Centauros e Musas". Não entendemos o porquê desses nomes. Eu disse que achava que o Galdino tinha se enganado. Ele diz que não, pois logo abaixo aparecia o nome "Ana Nauá".