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Capítulo 3

   Hoje a professora voltou a falar da música de Bee­thoven. "Não é nem mais bonita nem mais feia do que a música que conhecem. Não falo dessa que vem da ci­dade, de Manaus ou de São Paulo, e que empurram dentro da cabeça de vocês adentro, não, porque essa não me interessa. O que desejo dizer é que a música de Beethoven não é nem melhor nem mais bonita que a que conheceram na pequena infância, nas aldeias in­dígenas. E devem se orgulhar da origem e da civilização de vocês", explicou, segurando o giz com a mão esquerda. Olhou um por um nos olhos e continuou: "Beethoven é apenas diferente. Queria que notassem e respeitassem a diferença."

   As palavras da professora não foram bem assim, mas quase. Ela passou um tempão elogiando a nossa cultura e tive urna leve sensação de que, no fundo, no fundo, no fundo, acha a gente um bando de idiotas. Posso estar errada; espero, aliás. Ela tem sotaque carregado e se engana no masculino e no feminino. Logo no início, disse "a mapa do Brasil é muito grande e bonita". Rimos muito, baixinho, não sei se ela notou. É loura de olhos claros, meio azulados, já bastante velha, e se veste como as irmãs do meu internato (não exatamente hábito de freira, mas uns vestidos fechados e compridos, sempre da mesma cor; bege-claro).

  Fui educada pelas freiras salesianas no pequeno convento que fundaram na região no finzinho dos anos 70, início dos 80. Eram dez irmãs. Algumas não permaneceram todo o tempo, foram substituídas por outras. A que ficou desde o princípio — e está lá até hoje — é a irmã Gicélia.

  Além dos deveres da escola pública Marechal Rondon, eu fazia diariamente para a irmã Gicélia redações e resumos de livros. Irmã Gicélia corrigia, propunha modificações, dava ideias. Li uma boa parte dos grandes clássicos da literatura brasileira e mundial. Irmã Gicélia não deixava por menos. Exigia que eu estivesse sempre lendo um romance da biblioteca da Instituição. O essencial das obras literárias estava lá catalogado, dizia. Periodicamente chegavam pacotes com livros vindos de Rio Branco ou de Manaus. As freiras liam muito e promoviam reuniões onde além da religião, se discutiam assuntos culturais e política social.

     Galdino, Josimar e Felício, os meus três colegas, da nação Apurinã, foram criados num abrigo para índios que vieram para a cidade e não saíram mais. Não querem que se chame abrigo, preferem "espaço" de jovens índios transculturados. O espaço é mantido pelos padres franciscanos. Os três são órfãos de pai e mãe desde muito cedo. Foram sempre os melhores da turma. Na escola Marechal Rondon, alternavam o primeiro, o segundo e o terceiro lugar. Conhecem as capitais de todos os países do mundo de cor e salteado até hoje. Só uma vez consegui passar na frente deles. Agora alternam entre si as profissões. Um quer ser mecânico de avião, outro motorista de jipe, e outro locutor de rádio. E eu, professora primária. Eles têm, os três, dezoito anos, um a mais que eu. Vestem-se do mesmo jeito. Calças jeans, tênis e camiseta de várias cores (imitando marcas conhecidas). Todos os três usam óculos de grau e têm o cabelo cortado ao estilo militar. Aliás, eu me visto igualzinho a eles, só tenho o cabelo mais comprido, e não uso óculos.

    Estamos iniciando o primeiro ano do segundo grau na estola estadual (quer dizer, deveríamos estar, a escola ainda não ficou pronta,. Começamos tarde a escala primária, estamos agora, provisoriamente, na organização missionária. No início do primeiro grau, havia quarenta alunos, todos índios. A maioria não passou das primeiras séries. Muitos começaram a beber cachaça e cerveja nem bem tinham completado onze anos. Na oitava série só sobramos mesmo Galdino, Josimar, Felicio e eu. 'Ana e os seus três noivos", brinca sempre Caldino. Fabiana Susan, Fabi, a minha amiga da época do Marechal Rondon, gosta deles. Tem preferência pelo Josimar. Eia é da nação Poyanawa. Tem dezanove anos, entrou tarde no colégio. Foi até a sexta série. Tingiu recentemente os cabelos de louro, parece carregar um sol na cabeça o impo todo. Ficou esquisita.

    A história do jacaré e da jibóia da minha infância vai adquirindo um contorno bastante diferente. Ao ser passada para a modalidade escrita, arrojam-se. subitamente, detalhes que não existiam. É como se o novo estilo e a nova formatação provocassem também novos dados, movimentos, cores e perfumes. Cenas fronteiriças às contadas por minha mãe vão tendo vida nova e ganham autonomia. Seu rosto, revezado sem parar pelo meu, desfila sortindo na folha em branco transformada em espelho, a caneta desenha com letra irregular a nossa imagem à sombra das goiabeiras, os seres da floresta aparecem no espelho, tomam-lhe o lugar, mamãe reaparece sempre com um largo sorriso, de novo os animais, o meu rosto assoma no reflexo sobre estampas da margem do rio e da floresta verde-escura. Histórias mágicas e maravilhosas que li surgem com frequência , autoritárias, e guiam a minha escrita.

      Lembro-me de mamãe dizendo que à vezes o jacaré falava grosso. Vou começar um dos capítulos assim.

       Tive o mesmo sonho de sempre, hoje de manhãzinha. Estava tentando tocar flauta, e, a cada vez que soprava, os ruídos da floresta cessavam, um raio permanecia petrificado no céu, o trovão ressoava baixinho sempre com a mesma intensidade. De repente, eu me via cercada por animais da floresta, que também pareciam estáticos, como empalhados, todos tinham os olhos postos em mim, uma coruja piava de maneira estranha. Acordei com o rádio da vizinha aos berros.

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