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Capítulo 19

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    Foi provavelmente um movimento em defesa de alguma coisa dentro de mim, cujo teor não consigo detectar, que me levou a ser muito deselegante com a professora. Ela voltou a me chamar no final da aula. Lembrei que, ao duvidar da minha honestidade em relação ao texto — "é seu mesmo?" —, ela duvidou da minha cultura, da minha vida, dos meus ancestrais, em suma, do meu mundo. E verdade que se referia, ao estilo, como já tinha observado Josimar, ou Galdino, nem me lembro. A professora não conheceu as exigências da irmã Gicélia, as dissertações diárias, as fichas de leitura, as redações sobre temas da atualidade, os pequenos contos que eu devia escrever de um dia para o outro, os versos que devia compor nos fins de semana. Para Josimar (se não me engano foi ele), ela julgou o estilo, a gramática, não o que o texto dizia, até porque, observou ele, é um tema sobre bichos. Eu retruquei de imediato que as duas coisas, fundo e forma, andam juntas. E não era sobre bichos, era sobre a nossa civilização, era sobre seres humanos. Ele pareceu não concordar. Ou não entendeu.

     E hoje a professora me chamava para perto novamente! Sussurrou (não foi bem um sussurro, mas quase) que as autoridades encarregadas da educação nos estados da região amazônica, baseadas em laudos e pareceres de especialistas do Rio de Janeiro e de São Paulo que trabalham sobre textos escritos por mim durante toda a escolaridade, pensam em me indicar para um prêmio em dinheiro oferecido pelo governo dos Estados Unidos. Pretendem, ainda, conceder uma bolsa de estudo para cursar urna escola de segundo grau que faz parte de uma prestigiosa universidade daquele país. E querem publicar o texto que estou escrevendo agora. Ela enfatizou essa proposta de publicação. Logo em seguida pediu desculpas. Foi aí que a coisa complicou, não sei bem por qual razão.

    Foram essas, literalmente, as suas palavras (guardei-as bem): "Peço desculpas por ter duvidado de você naquela vez; não sabia que as suas qualidades já vinham sendo estudadas por especialistas do Brasil inteiro há mais de um ano; fui informada naquela semana mesmo. Mas sabe, Ana, é que você atrapalha a gente. Esses traços finos, essa beleza suave, esse corpo perfeito, você tem parentes brancos?" Não aguentei. Chamei ela de racista, chorei, disseram que gritei como uma guariba (segundo Galdino).

      Foi uma crise nervosa que veio não sei de que jeito. Irmã Gicélia teria ficado surpresíssima comigo. Lembro que os meus três "noivos" ficaram pasmos, a professora lívida, quase teve um treco. Fugi do galpão em disparada e só parei de correr na beira do rio. Via água por tudo que é lado. A margem do lado de lá não ria; ao contrário, olhava para mim com traços severos e censuradores. Voltei para o galpão mais tarde, mas já não encontrei a professora para pedir desculpas.

      Fui ver irmã Gicélia, a quem não via há algum tempo. Senti um aperto no estômago quando entrei no casarão das irmãs. Irmã Gicélia me recebeu com o abraço caloroso de sempre. Da cozinha vinha cheiro de jaraqui frito. Contei sobre a minha reação. Ela disse que conhece muito bem Dona Elza, em quem deposita inteira confiança. Para ela, é a insegurança que persiste em relação à cultura indígena. Ás vezes, hesito em assumi-la, considerou, friamente. Qualquer perguntinha de nada pode ser interpretada por mim de maneira errônea. Também não gostei, mas vindo da irmã Gicélia era um julgamento com isenção. Por me ver contrariada, implorou, com grande carinho, que não desse importância, pois muito vinha de problemas típicos da idade, das revoluções dentro do corpo da gente, de problemas de identidade cultural, e, olhando-me bem nos olhos, asseverou: muitas dessas reações intempestivas são causadas por problemas afetivos (usou algumas vezes a palavra amor). Parti aliviada. Mas, sinceramente, não sei o que deu em mim.

     Saí pensando no Felício e na beira do rio. Isso me acalmou bastante. Pássaros cantavam à minha volta. Começarei um dos próximos capítulos com o som deles.

     Ao chegar perto de onde moro me deparei com o louco Palmiro. Ele levava urna rama de macaxeira na mão esquerda. Como sempre faço, ignorei-o e entrei, rápido, em casa. Espiei da janela. Palmiro rondou por ali, como se procurasse alguma coisa, por algum tempo. Numa hora deu uma guinada brusca, e desapareceu compassos apressados.

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