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Capítulo 18

     Já anoitecia quando um bagre-branco surgiu, de repente, das águas obscuras de um afluente e dirigiu a voz grave aos dois animais da margem do Rio Amazonas.

       — Em nome dos meus irmãos, gostaríamos de conversar sobre a caça que vocês têm guardada aí no barranco. A viuvinha olhou assustada. O pensamento se embaraçou todo, ainda mais que de costume. "Por essa eu não esperava, um bagre-branco! Um peixe dessa imensa família! Viu, seu burro, se tivesse ficado tranquilo, nada disso tinha acontecido, agora é fogo. Não sabia? Mas como não sabia? E pra que essa carona de enfezado, montes e montes de dentes, e esse couro duro, se de esperteza tem só uma coisiquinha de nada? Quem disse? Sou eu que estou dizendo! Ah, deixa pra lá, você não me ouve mesmo! Mas com essa família de peixe não se brinca, vai por mim. É uma família muito grande e variada. E unida. Agora tem que encontrar uma saída, jacaré. Não tem jeito."

    Os dois macacos também se assustaram. "Você viu? Bagres de todos os tipos. Eu não estou enxergando bem daqui, quantos você acha que são? São tantos que ninguém da terra seria capaz de contar. Vamos aproveitar e jogar esses coquinhos verdes na cabeça daquela cobra desavergonhada."

    Foi o jacaré que acabou por receber vários coquinhos no corpo duro. A jiboia escapou ilesa. Os projéteis não acertavam o corpo esguio e comprido.

     Com a proposta feita pelo peixe, a jiboia aparentou despertar do sono profundo, o jacaré moveu o corpanzil. Como tivera o bagre conhecimento dos troféus de carne armazenados na margem do rio? A afirmação do bagre era clara, a proposta evidente, a manifestação de força incorporada no tom de voz mais do que transparente. Desnecessário também dizer que os tais irmãos não eram as traíras, mas a imensa família dos bagres, como logo se pôde depreender. Os répteis apontaram para as traíras com um movimento de olhos. Elas serviam, momentaneamente, de aliadas. O intruso entendeu, mas, pelo jeito, estava se lixando paras as traíras.

  

— Nós, bagres, não tememos as traíras, somos mais fortes que elas, pois, além dos esporões que guarnecem o nosso corpo, podemos viver em águas salgadas e doces. Se tivermos problemas aqui, receberemos reforços imediatos dos irmãos que vivem no Oceano Atlântico. Assim a nos-sa espécie não desaparecerá jamais. E não venham com astúcias. Não me obriguem a fazer ameaças, vocês poderão sofrer as consequências.

     O canto do uirapuru interrompeu o discurso e as explicações do bagre. A doce melodia trazia fortuna a quem? O uirapuru tentava demonstrar a um companheiro que estava cantando cada vez melhor.

     — Quer ver esta virada, meu amigo?

     — Quero.

     — Aí vai.

     O assobio foi mesmo longo.

     — Esse eu também sei fazer. Ando com problemas no papo, por isso não posso emitir esse canto agora.

     — Acredito, amigo, acredito. Mas, de qualquer maneira, ouve mais este, que é melhor ainda que o primeiro.

      Foi esse último assobio que a jiboia, o jacaré, a traíra e o bagre ouviram.

      O jacaré e a jiboia não conseguiam se refazer do tom áspero, direto e seco do peixe adversário. Áspero, direto e seco, mas, principalmente, ameaçador, intimidativo e apavorante. E que frieza e objetividade! "Gostaríamos de conversar sobre a caça que vocês têm guardada aí no barranco!"

      A ex-traíra chefe, que tudo ouvia, exultava. Mas não sabia se fazia cara de felicidade, ou fingia indiferença, ou ajudava explicitamente a reforçar as ameaças do bagre. Podia voltar ao mesmo argumento dos números, e talvez até recuperar o seu posto. Diria de novo "somos milhões e milhões de dentes afiados". Ainda podia acrescentar "dentes que cortam como tesouras" e inventar outras coisas. Mas preferiu guardar reserva. Esperaria o desenrolar dos acontecimentos. Os outros seis postulantes à posição de liderança estavam atarantados, confusos e indecisos com a nova situação. Que atitude tomar? Aliar-se pura e simplesmente aos bagres, que nem bem amigos eram? A pouca distância rio acima, cutias, pacas, caxinguelês e tamanduás espiados por jaguatiricas e graxains fuçavam e mastigavam cupuaçus, abius, bacuris e cachos de açaí espalhados pelo chão úmido. O perfume exalado das frutas maduras caídas sobre o húmus penetrava na floresta e adocicava o trecho da margem do rio onde estavam, quase petrificados pela indecisão e pelo medo, o jacaré e a jiboia.

      Os dois répteis tentaram, com muita discrição, avançar em direção ao rio, só para fazer um teste. Imediatamente as presas das traíras chocaram-se com força, dente com dente, o barulho era ensurdecedor e dava calafrios. A jiboia e o jacaré recuaram, amedrontados. Passado pouco tempo, repetiram o gesto.

     Aproximaram-se, devagar, da beira do rio, e, de imediato, bagres de todos os tipos e tamanhos, numa quantidade desmedida, surgindo do nada, postaram-se entre os répteis e as traíras, os esporões dos lados e do dorso em guarda, tal lanças pontudas e mortíferas. A água do Rio Amazonas fora substituída por urna esteira de lombadas gosmentas, coladas umas às outras, que reproduzia a iluminação do céu. O cardume de traíras se viu empurrado contra a margem oposta do rio. O jacaré e a jiboia, espavoridos, recuaram mais urna vez, como ondas de ressaca de mar bravio.

     Todos estancaram abruptamente. E teriam que se apertar. Aproximava-se um descomunal cardume de piranhas. Nessas horas, era ficar quieto e deixar a manta de peixes desaparecer. O cardume escuro levou um bom tempo passando, parecia que não ia mais acabar. Urna vez distanciado, o diálogo naquele trecho do Rio Amazonas voltou.

     — De maneira que, com todo o respeito — continuou o bagre-branco, visivelmente calmo e seguro da sua reivindicação —, exigimos parte da caça. Sabemos, de geração em geração, que vocês dois, quando estão juntos, sempre dão um jeito de empilhar montes e montes de bicho na margem do rio. Carne que nem vão conseguir comer. Se não cederem, será pior pra vocês. E melhor jogar claro. Aliás, mais do que isso! Será o fim de vocês. Caso as traíras não dêem cabo dos dois, nós entraremos em ação. Nós, entenda-se, as famílias bagre-amarelo, bagre-bandeira, bagre-boca-lisa, bagre-urutu, além dos nossos primos-irmãos surubins, tambuatás e tantos outros. Os primos jaús estão só à espreita lá embaixo, nas profundezas do rio. Um deles, com quem estive há pouco, pesa mais do que vocês e temo comprimento de um jacaré dos grandes. E, é sempre bom lembrar, adora engolir traíras e os pedaços de carne de jiboia e de jacaré arrancados por elas. Como sabem, existem milhares de jaús aí pelos rios afora. Aliás, nós todos, da grande família dos bagres, adoramos engolir as traíras e a comida delas.

     Os jaús, diga-se, mantinham nutrida conversa entre eles lá no leito do rio.

     — A minha vontade é agarrar aqueles dois da margem e passar urna descompostura neles.

    — Descompostura, não. Dar-lhes uma boa sova, isso sim. — Ou arrancar pedaços daquelas carnes brancas e estranhas.

    — Ou dar urnas boas ferroadas na barriga de cada um, e não se falava mais nisso.

    Os bagres roubavam a cena, davam as cartas e tomavam pra valer a dianteira do confronto. Eram diretores, atores e público ao mesmo tempo.

    "Pedaços de carne de jiboia e de jacaré", esse detalhe foi o mais realista da explanação do bagre. "Pedaços de carne dos nossos corpos", pensaram com pavor o jacaré e a jiboia. O arrepio voltou a percorrer o corpo dos dois répteis. "Brrrrr", um ouvia sair, baixinho, da boca do outro.

     Os quatro — o jacaré baixara o focinho comprido, a jiboia os olhos, a traíra fechara a boca, o bagre guardara o esporão — passaram a noite calados. Refletiam, avaliavam, pesavam, meditavam. Quem tinha razão? Quem tentava tapear quem? Quem ia sair logrado? O destino, a sorte, a razão, a verdade, a natureza, quem traria a solução? Nem o rugido da suçuarana no encalço de um tamanduá-bandeira interrompeu-lhes o pensamento. No entanto, a suçarana e o tamanduá-bandeira falavam o que pensavam, pertinho daria até para ouvir.

    — Ainda agarro esse tamanduá. Ele gosta de ficar brincando de gato e rato comigo. Mas deveria entender que tenho filhotes para alimentar.

    O tamanduá-bandeira, é óbvio, pensava diferente.

 

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   — Se ela chegar muito perto, enfio as unhas naquele lombo, que ela vai ver. Que mania de ficar querendo devorar a gente!

       

      Os répteis buscavam saída. Como dar fim nos bagres, apoiados, de toda evidência, pelas traíras? A seiva tóxica do timbó se espalhando pelo rio inteiro; urna seca terrível, rios e lagos ressecados e estorricados; um bicho diferente, desconhecido, enorme, que devorasse todos os bagres e todas as traíras da região. Enfim, imaginaram situações drásticas, definitivas, que pudessem livrá-los daquela situação difícil. As soluções vislumbradas, todavia, não ultrapassavam a esfera dos sonhos. O bagre estava ali, petulante, secundado pela extraíra chefe, então curiosa, mas já ensaiando, pela cara, um quê de soberba.

       Os postulantes à chefia do cardume de traíras-pixunas continuavam as manifestações de desentendimento. Três deles propunham abrir urna frente de batalha contra os bagres. Os três outros tentavam demonstrar a loucura e a leviandade contidas na proposta. Chegavam a dizer que era suicídio. "Se contra o jacaré e a jiboia já temos urna situação difícil e delicada, e de vitória incerta, agora imaginem engrossar as hostes inimigas, daí é líquido e certo que perderemos", argumentou um deles. O de peito inchado e dentes grandes era, paradoxalmente, um dos três moderados. Tentava conter os ânimos. Houve empurrões, alguns sérios. O grosso do cardume parecia, agora, ter olhos para o ex-chefe. Talvez em decorrência da manifestação silenciosa de apoio do cardume e das brigas entre os seis postulantes à chefia, o ex-líder juntou-se a eles. Desempataria o jogo!

     Sua primeira frase foi de reconhecimento. Tinha exigido pouco do jacaré e da jiboia na margem de negociações, admitia. Fazia um mea culpa. Aproveitaria, na próxima vez, parte da indignação e da revolta do colega de peito inflado e dentes para fora. Os seis da frente olharam alternadamente para o cardume e para o ex-líder várias vezes. Depois de muita análise e frases soltas, muxoxos e acusações, acabaram por repassar a chefia provisoriamente ao ex-líder. Na composição final, aceitaram integrar um Conselho que buscaria fórmulas para saírem do impasse. Impasse que a chegada maciça dos bagres havia criado. Com efeito, caso os bagres convencessem os dois da margem do rio a cederem o butim, não havia a menor garantia de que os novos donos da caça dividiriam o que quer que fosse com as traíras.

    A traíra chefe não demonstrou nem alegria nem orgulho com a retomada do comando das operações. Não cabiam exposições, cobranças, ressentimentos menores e individuais diante de situação tão grave. Ele se conteve, mas foi graças à chegada dos bagres que lograva recuperar o cargo.

     Os ventos tinham mesmo mudado. O jacaré e a jiboia eram, agora, os mais vulneráveis. Poderiam abandonar tudo, o monte de bichos mortos, as traíras, os bagres. Ir em busca de novas paragens. Porém, aquele era o território deles, bem demarcado e traçado. Teriam que conquistar outras terras, lutar contra irmãos, dominar novos pedaços de floresta. Não! Era ali que deviam permanecer. Lutar pelo que entendiam ser justo!

    Todos tinham visto a alegria do boto a caminho daquele trecho da margem onde se debruçava o vilarejo de seringueiros e de colhedores de castanhas-do-pará. De nome Iara para uns, Mãe d'Água para outros, o boto ia contente por levar felicidade às moças ribeirinhas. Tinha uma vida útil, conhecia outro mundo, ele sim era feliz. Já eles, os dois répteis, se viam acuados, ali, no impasse entre a margem e o rio.

    Os dois andantes apressaram o passo. O jacaré e a jiboia já tinham visto, por várias e várias vezes, aqueles dois índios calados, curvados, o olhar perdido. O sagui-leãozinho que os tinha adotado continuava os diálogos.

    — Parece que vamos encontrar a nossa nação depois daquele igarapé, estou sentindo.

    — Eu também, Mucura, eu também.

    — Vamos depressa.

     Lá de cima, o sagui via muito bem que do outro lado do igarapé não havia ninguém.

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