Profº Godofredo de Oliveira Neto
Ana e a margem do rio
Godofredo de Oliveira Neto
Capítulo 26
A primeira a se mover foi a jiboia. Sem perguntas ao jacaré, passou a empurrar, com dificuldade, pedaços de bichos e bichos inteiros até a beirinha do barranco, depositando-os com doçura nas águas amareladas do rio. A cobra bateu em alguns gravetos espinhentos, atrapalhou-se, contraiu-se toda. Lá em cima, foi urna alegria. "Bem feito, bicho feio. Então, tripa gelada, gostou dos espinhos?" O jacaré logo depois passou a imitá-la com gestos bruscos e canhestros, mas com a nítida intenção de demonstrar total boa vontade. Agarrava pedaços com a boca sem triturá-los, com todo o cuidado, andava meio em ziguezague, entrava parte do corpo nas águas, abria a bocarra com lentidão, os bichos caçados iam se amontoando no raso da prainha, voltava, desajeitado, até o depósito dos troféus, de novo caminhava até o rio. A viuvinha pensou a distância nos dois sócios arruinados. "A negociação, agora, tem que ser dentro de vocês próprios. Fazer urna avaliação de interior. Ah, não sabem como fazer? Pois é, não sabem, né! Pois deviam ter aprendido!"
A jiboia atrapalhou-se num cipó-d'água que descia de urna castanheira e impedia a passagem, assustou-se, eram aqueles cipós que, antes, tinham sido cobra vivendo em barriga de mulher, como contavam os índios do alto Solimões. O macaco, no alto, idealizava cenas violentas com aqueles cipós. As lianas ganhando vida, a jiboia sendo enforcada pouco a pouco. No fundo, o macaco aguardava mesmo era a noite, o silêncio, as imagens trazendo o conforto e a resposta aos anseios. Em outras fases da vida, fechava os olhos, e o sono vinha junto com a cena prazerosa no cipoal, rodeado de companheiras a sorrir para ele. Agora era o desejo de vingança que lhe invadia o sono. Como não lograva punir de verdade aquela fria e desalmada jiboia por não dispor de forças suficientes, restava-lhe a imaginação. Ver a cobra sufocando nos cipós, se debatendo no fogo, cortada ao meio por um jacaré raivoso, engasgada com um bezerro mal engolido e entalado na goela. O macaco não contava esses sonhos para a companheira. E que ela podia pensar mais longe: "Se ele é capaz de encontrar descanso e satisfação ao mergulhar nos seus sonhos de vingança, também poderá passar sem mim se o tema do sonho for outro." De qualquer maneira, o mais que provável é que ela própria tivesse os seus sonhos e também não contasse nada.
O jacaré, em certa hora, deu uma guinada violenta, evitou um arbusto. Os homens que desde sempre viveram naquelas florestas, e que estavam agora sendo expulsos por outros trazendo doenças, vestidos de panos coloridos e armados com motosserras, conseguiam caçar animais com sarabatanas de onde saíam flechas envenenadas. O jacaré sabia que uma das folhas usadas para fazer o veneno vinha desse arbusto, ele já tinha visto bicho flechado com curare paralisado no chão, morrendo asfixiado, nem o caipora conseguia salvar. O réptil continuou o sobe-e-desce, desviando da planta venenosa.
A dança nupcial dos tangarás num arbusto próximo chamou a atenção dos dois. Os pássaros machos saltavam de um ramo baixo, a fêmea, em outro galho, um pouco mais acima, permanecia quieta, imóvel, os machos se alternavam, pulavam e voavam, as penas eriçadas, o rabo em leque, davam urna volta no ar, retornavam ao ramo. O espetáculo vinha acompanhado por gorjeios e longos assobios emitidos por cada pretendente à fêmea.
— Psiu — fez o jacaré para um dos tangarás. — Psiu — insistiu, sem obter resposta do pássaro. No terceiro psiu, a ave respondeu.
— O que que o senhor quer?
— Por que essa dança? — perguntou então o sáurio.
— Não tenho tempo de responder agora, senhor.
— Mas só me responda: por que essa dança?
— Não tenho tempo agora, já disse — falou o pássaro antes de dar uma revoada, pousando logo depois num galho fino.
— E por que deu essa revoada assim? É dança nupcial?
— Já disse que não posso falar, e vê se me respeita, seu velho coroca. O senhor já está sendo chato.
O jacaré continuou o trabalho, repetindo, de cabeça baixa, "coroca, coroca". Num dos momentos em que se cruzavam, a jiboia perguntou:
— O que que você estava dizendo ao pássaro?
— Nada — respondeu o jacaré meio casmurro.
— Nada como, se eu vi você falando? — insistiu a cobra.
— Nada, já disse, aquele pássaro é um mal-educado, — retrucou o jacaré.
— E por quê? — indagou a cobra.
— Porque eles ficam dançando corno uns bobos assim, na nossa frente, só por isso.
— Ah tá — resmungou a cobra, com ar distante.
A jiboia, ao passar mais urna vez perto do espetáculo azul, alado e de gorjeios harmoniosos, perguntou a um dos atores emplumados:
— O que que o jacaré queria saber? Só recebeu a resposta depois da quarta e insistente tentativa.
— Não nos incomode, a senhora deve ser tão abelhuda quanto ele.
A cobra também continuou as idas e vindas, de cabeça baixa, repetindo "abelhuda, abelhuda".
O casal de símios parou, aterrado. Um galho reto, liso e comprido, com penas vermelhas e azuis agarradas na cauda, passou assobiando rente a seus ouvidos. Não foram atingidos pela ponta mortífera por um triz. Respiraram fundo, se olharam. Ainda não foi desta vez!
A jiboia, que se apercebera da passagem de um grupo de índios pelo local, imaginou o terror estampado na cara dos macacos e exultou. Procurou-os entre as folhas e conseguiu vê-los. Estavam congelados, estáticos, como duas manchas pardacentas desenhadas no tronco da imensa castanheira. Encontraram-se os dois — o jacaré e a cobra — ainda dezenas de vezes. Um vinha, o outro ia, um descia o barranco, o outro vinha subindo. A cada passada perto do arbusto dos tangarás, davam uma paradinha e olhavam a dança, admirativos. Os dois caçadores da margem do rio e ex-adversários das traíras e dos bagres foram ficando exaustos, sem forças, vazios. Vazia também acabou por ficar a depressão do terreno em forma de bacia onde os caçadores guardavam os animais abatidos. Quase todo o alimento estocado tinha mudado de lugar. E de dono. Já não pertencia ao jacaré e à jiboia. O bagre deixou escapar a frase que o chefe das traíras tanto esperava: "Dá para as traíras e para os bagres, para nós todos, não se preocupe."
Um cardume de piranhas surgiu ao longe. Passou devagar, os dentes da frente vinham cortando a água. Os bagres e as traíras não se mexeram. O jacaré e a jiboia também aguardaram a passagem do temível cardume. Em certo momento, o jacaré quis se coçar e pediu ajuda à jiboia.
— Você viu a viuvinha por aí, jiboia? Não consigo achar aquele pássaro.
— Não, não vi. Acho que ela foi embora.
— Embora? Bem agora que ela podia comer esse besouro preto que insiste em se agarrar em minhas costas? Quando a gente precisa realmente dela, ela some.
— Ela não ia poder comer um escaravelho desses, é muito grande.
— E você, então, pode me ajudar a tirar ele daí de cima?
— Não. Não gosto muito desses besouros pretos.
Nesse instante, um gavião gritou. O jacaré desejou se transformar numa dessas aves e sair dali. Em vão. Tinha mesmo é que finalizar o trabalho.
A jiboia pressentiu, de novo, a passagem dos índios, que não viram os animais mortos empilhados na prainha do rio. De qualquer maneira, eles não iam mesmo querer aqueles bichos já mortos. Preferiam caçá-los eles próprios. Ela procurou os macacos. Nada. "Desta vez, as flechas devem ter espetado aqueles dois bichos horríveis lá do alto das árvores", comemorou, baixinho.
A viuvinha já estava mais do que instalada na outra margem do rio. "Esses jacarés não servem pra nada, são uns bichos inúteis. Detesto esses animais. Minha vida são os meus desejos, é só isso que existe. O resto é o resto. Imaginação, restos, enfim."
Numa hora em que o jacaré estava na margem, caminhando em direção à depressão do terreno onde restavam ainda alguns pequenos animais, a cobra engoliu, às pressas, um porco-do-mato, um quati e um tamanduá-bandeira. Tinha alimento para digerir devagar por muito e muito tempo. O jacaré nada percebeu. Tampouco os bagres e as traíras. Mas o jacaré, também, numa distração da ex-sócia, conseguiu devorar, às escondidas, duas pacas e uma jaguatirica.
O sol estava a pino quando o jacaré e a jiboia deram por totalmente encerrada a tarefa. O tabuleiro de xadrez estava pronto para o início de uma nova partida. Ninguém celebrou. Nem a traíra, nem o bagre, nem o jacaré, nem a jiboia. Era melhor para todos, só isso. Um casal de piavas passou devagar, trocavam beijinhos, iam encostados, como se um empurrasse o outro com a mesma força, o esforço carinhoso empatava, nadavam em linha reta e comentavam:
— Sabe lá o que esses quatro encrenqueiros andam fazendo por aí?
— Deixa. Eles não sabem o que é viver.
— Mas acabam incomodando os que gostariam de viver a vida com tranquilidade.
— Acabam sim, mas fazer o quê?
— Será que um dia eles não vão aprender?
— Ainda que ache difícil, espero, francamente, que aprendam sim. "Vamos jogar fruta podre naquele bicho perverso, tenta acertar bem na cabeça." A cobra fugia para um lado, para o outro. Os macacos continuavam a artilharia. "Você notou como ela está com a pele meio branca e nova?" "É, notei."
A cobra de pele nova, que já havia levado uma surra da sua rival, companheira do jacaré, só dizia: "É um erro, é um erro." Os macacos continuaram a saraivada de frutas. Subitamente, deram-se conta do equivoco. "Acho que perdemos de vista a cobra inimiga. Essa aí de baixo não é ela. Vamos voltar lá pra margem do rio." A cobra ia com um amigo.
— Que coisa horrível essas frutas podres! Você viu?
—Vi. O que era?
— Não sei, mas vamos lá pro nosso canto, no lago azul, lá poderemos viver em paz. Chega de brigas e lutas.
Foi a fêmea do macaco que ponderou, com voz cansada. Ela obrigou o marido a olhar nos seus olhos e disse:
— Meu velho, não acha melhor aproveitar esta nova situação, agora que perdemos a cobra de vista, e irmos viver a nossa vida? Já não chega dessa perseguição inútil?
— O quê? Deixar essas sucuris, ou jiboias, em paz? É isso que você quer?
— É, é isso, acabar comesse desejo de vingança, meu velho, é isso mesmo. O macaco imaginou-se transformado num bicho-preguiça, transfigurado em bicho lerdo e vulnerável, com uma cabeça pequena e arredondada, um olhar inexpressivo. Para afastar a horrível sensação de metamorfose, apressou-se em atirar naquela jiboia, meio sem vontade, pedaços de cascas de árvore que arrancava do tronco com os dentes. Sentiu a inutilidade do gesto, olhou com ternura a companheira, pensou no filhote que o esperava no grupo — o filhote que desde muito tempo já não sentia mais falta deles —, e os dois lançaram-se por galhos e cipós na direção da árvore onde bandos de macacos da sua espécie costumavam dormir à noite. O macho sentia-se um gavião planando e divisando, dos ares, a floresta inteira. Disse, então, olhando para a frente: "Chega, você tem razão, vamos viver a nossa vida em paz." Os dois não puderam ouvir a frase da jiboia ao cúmplice jacaré: "Pelo menos, aqueles dois lá de cima agora já devem estar sendo assados no fogo."
A viuvinha sentia fome. Já há alguns dias vinha enganando o estômago com pequenos e insípidos insetos, fáceis de serem apanhados. Viu, em certa hora, por uma fresta entre as folhagens, um jacaré deitado na areia, em plena digestão. Ele parecia familiar. Um ar, assim, de coisa já vista. Ela notou que algumas saliências da sua couraça estavam estragadas, o focinho rasgado em algumas partes, o corpo todo com pequenos talhos e arranhões. Aproximou-se. O bicho estava com a boca aberta. Parecia urna estátua. Finalmente o reconheceu. Era o jacaré que tinha enfrentado o sócio da jiboia. Tinha atravessado o rio e agora vivia, tranquilo, numa prainha só sua. A viuvinha aproximou-se mais. Sentiu que os olhos do réptil se mexeram. Previam o movimento da ave. Ela, então, sem nenhum medo, passou a dar bicadelas entre os dentes do jacaré. Retirava pedaços de comida num ritmo cada vez mais intenso. "Esse jacaré me parece melhor do que o outro. Ele abre mais a boca, fica tudo mais fácil. Esses bichos, quando são dos bons, não existe nada igual. Gosto muito desses animais. Acho que vou ficar por aqui. Sinto que vou ganhar um amigo, e ele uma amiga."
O jacaré, a jiboia, a traíra e o bagre puderam ver, além do casal de piavas, o boto que descia as águas calmamente, quase se deixando levar pela leve correnteza. Ia assobiando. Vinha da cerimônia na beira do rio. Ele sempre espalhava que, ao deixar por alguns instantes de ser boto, ingressava num mundo melhor. Dizia que os humanos tinham a vantagem de dispor de certas qualidades, como a generosidade. Podiam, se quisessem, oferecer alimentos aos outros, dar-se sem exigir contrapartida. Não praticavam o sacrifício aos deuses. Conheciam a noção do dom. Conseguiam inventar histórias e, assim, criar outros mundos. Os quatro animais olharam-se, tentaram compreender-se. O boto voltava feliz, sim, por conseguir conhecer um outro universo. Um novo universo. Mas os quatro bichos do encontro na margem do Rio Amazonas foram também agora, mais experientes, mais sorridentes, mais leves, mais felizes, viver melhor o mundo deles.
Uma enorme casca de árvore, provavelmente arrancada com as mãos, de um velho jatobá. Era isso que Bakororo e Mucura arrastavam. Bakororo empurrou devagar a longa casca de jatobá até a água, um aruanã na-dou assustado. Mucura trazia dois remos improvisados. Logo, os dois puseram-se a remar de pé. O casco balançava de um lado, do outro, os dois índios se equilibravam. Os traços de urucum no rosto davam-lhes dignidade. O sagui-leãozinho sabia que mais hora menos hora um boto-tucuxi ia nadar ao lado do jatobá. O voo amarelado de um galo-da-serra distraiu o sagui. Na volta, os seus olhos puderam ver, na margem oposta, índios enfeitados com penas de todas as cores que acenavam ansiosos para os dois navegantes. As frases imaginadas pelo pequeno macaco não saíram como antes. Embaralharam-se, arrastaram-se. Ele sabia, no entanto, que Bakaroro e Mucura tinham encontrado a sua nação. Os dois índios moviam a boca, dava pra ver, o diálogo era fácil de imaginar, mas não saiu nada desta vez, só os pequenos olhos do sagui pareciam receber densas gotas do grande rio, que acabavam por escorrer no pelo amarelado.