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Capítulo 16

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Um bando de araras vermelhas irrompeu no céu azulado, seus gritos escandalosos espantaram aves de todas as cores, a revoada geral agitou os ar., mancha, de variados toas moviam-se, descontroladas, andavam a floresta, esverdeavam o céu, avermelhavam o tronco das árvores as margens do rio. As araras tagarelavam, desbragadas pelos ares, comentando a alegria da vida.

     — Vamos lã proa buritis — Não, tem fruta sobrando lã perto do grande jacarandá.

      — Melhor irmos empanturrar de graviola naquele pé grande.

      — Hoje eu quero é genipapo.

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      — Chega de genipapo, quero fruta mais dura, pra quebrar com o bico, tipo castanha-do-pará.

      — Pra esses lados tem pouco, melhor então mudar de rota.

     O alarido do bando vermelho foi desaparecendo no horizonte.

     A traíra, finalmente, desistiu. Seus dois adversários pareciam, de toda evidência, mais fortes. Levavam vantagem sempre. Ela pensou no boto, faceiro, a caminho de outro universo, feliz, satisfeito. E ela, o que dizer aos seus peixes? Um mísero quarto de bicho de pelo oferecido pelo jacaré e pela jiboia, e que, com certeza, nem de anta ia ser. O pior era ouvir os comentários de outros bichos afirmando que traíra sempre arranja comida fácil! Mal sabem que elas são tantas, que para conseguir alimento para todos é preciso trabalhar e penar muito. Dava vontade de sumir. Mas não tinha saída. Ela devia enfrentar a realidade.

     A traíra sonhou, meio acordada, com a história da cutia de ouro lá do vale do Rio Branco contada pelo boto. A mãe de um índio, dizia-se naquele vale, tentou convencer o filho a não ir por um certo tempo à caça, sobrava carne no fogo. O rapaz não concordava. Respondia que era muito valente, e homem devia caçar.

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     A traíra sonhou, meio acordada, com a história da cutia de ouro lá do vale do Rio Branco contada pelo boto. A mãe de um índio, dizia-se naquele vale, tentou convencer o filho a não ir por um certo tempo à caça, sobrava carne no fogo. O rapaz não concordava. Respondia que era muito valente, e homem devia caçar.

     Certa vez, ele acompanhou os irmãos a um buritizal aonde a família costumava ir recolher os frutos caídos no chão. Ao valentão não interessavam as frutas; interessavam-no os animais que vinham saborear os buritis. Nesse dia, o jovem índio tentou flechar uma rechonchuda cutia dourada, mas errou. Tentou mais uma vez, errou de novo. A cutia continuava a roer com tranquilidade o fruto da palmeira. Os irmãos riram alto. Espantada e assustada pelas risadas, a cutia fugiu. O jovem índio correu atrás, atirando flechas. Não acertava. A cutia às vezes parava, roía a fruta, segurando-a displicente e provocativamente com as duas patas da frente, e tornava a correr. O gesto irritava ainda mais o rapaz, que seguia atirando e errando as flechadas. A cutia continuou a carreira, embrenhou-se pela selva, pelos capinzais e serras, e, afinal, se escondeu atrás de uma moita.

     O jovem índio tentou surpreendê-la por um dos lados, mas viu-se, de repente, diante de uma moça. Tentou tocá-la, escorregou, caiu sobre a moita, que se encheu de grandes espinhos. O rapaz gemeu de dor, o corpo ia se rasgando, preso ao arbusto. Ele foi encontrado seis dias depois quase morto e beirando a loucura.

      Os que chegaram puderam ver, ao lado do rapaz preso nos espinhos dos arbustos, uma jovem — que logo desapareceu — comendo com displicência um fruto do buriti.

     A traíra imaginou os espinhos da touceira unha-de-gato rasgando o couro e a pele do jacaré e da jiboia. Ela já tinha ouvido falar também de histórias de tocandiras e jacarés, os ferrões das centenas de milhares de formigas atacando um deles, sonolento e desprevenido à beira da lagoa, partes das axilas desprovidas da couraça, a boca vulnerável. As ferroadas queimavam, a gengiva e a sovaqueira pegavam fogo, a mancha de formigas aumentando, empretecendo o chão, o jacaré surpreso ainda se debatendo e, afinal, sucumbindo ao veneno dos terríveis insetos. O súbito movimento dos répteis trouxe de volta a realidade. A traíra só restava mesmo ceder.

     — Está bem, está bem, aceitamos uma pata, mas a traseira pelo menos, tem mais carne. E de bicho grande, se possível de anta. —A frase pronunciada pela traíra saiu arrastada, a última sílaba quase nem deu para ouvir.

      Ela cedia, mas, pelo menos, que levasse um pedaço maior. Tinha contas a prestar ao seu cardume. Caso necessário, renunciava até a essa última exigência — pata de anta —, aliás, nem bem exigência, mas humilde pedido de compreensão.

    Em frente, na outra margem do rio, estampava-se, sobre vários tons de verde, a floração de um ipê-roxo. A copa das árvores mais altas recortava irregularmente o céu claro. A faixa horizontal de verdura, colorida embaixo pelo amarelo das águas barrentas e, no alto, pelo azul do céu, estendia-se, dos dois lado, a perder de vista. O traço esverdeado vinha borrifado por confetes amarelos e roxos dos ipês, o azul do céu maculado pela brancura de nuvens encarreiradas, o amarelo do rio manchado, aqui e acolá, por pedras escuras.

     O jacaré e a jiboia conversaram baixinho, faziam caretas, o jacaré balançava a cauda, a jiboia os olhos. Foi o jacaré quem respondeu:

     — Está bem, nós também concordamos. A voz tinha saído em estilo amical, como se acabassem de descobrir que vinham praticando injustiça há tempos. Era hora de corrigir a trajetória. Claro, claro, coitadas das traíras, elas tinham absoluta razão, como não haviam pensado nisso antes? Foi, mais ou menos, o pensamento dos dois.

     A jiboia se encarregou de trazer um quarto traseiro de porco-do-mato previamente dilacerado pelo sócio. A porção de carne jogada pela cobra abriu um círculo naquele remanso do rio. Logo, com a autorização do chefe, milhares e milhares de traíras devoraram o bocado com a rapidez de um raio. Os dois répteis instalados na margem do rio sentiram um calafrio. Os milhares de traíras — pareciam milhões —, insatisfeitas com a pequena refeição, exibiam os dentes cortantes na linha d'água, como se declamassem num coro monumental "venham, senhora jiboia e senhor jacaré, venham para a água agora, estamos com fome, e vocês parecem bem gordinhos e apetitosos!".

    O pássaro hóspede do jacaré observava e pensava, escondido atrás do tronco de uma . "Deixa pra lá, dá uma corrida na jiboia, volta pra prainha tranquila de antes. Agora não dá mais? Pois é! E nem adianta eu tentar imaginar um diálogo com você. Você não me ouve mesmo!"

      Os dois macacos-aranhas se surpreenderam e murmuraram, em tom sarcástico. "Essa agora eu não entendi. Esses peixes todos. E então, cobra gelada, vai enfrentar os peixes na água? Espero que em um dos seus acessos de arrogância se jogue no rio. Queremos ver pedacinhos de jiboia arrancados pelas traíras por tudo que é canto."

    O líder do cardume das traíras-pixunas ia perdendo o comando, a situação de penúria destituíra-o naturalmente do poder — um quarto traseiro de porco! Outros pretendentes ao posto apareceram, o de peito estufado e dentes avantajados se destacava, pequenas escaramuças eclodiram aqui e ali, o já ex-líder recuou da posição de frente, seis outros tomaram-lhe o lugar, mas a direção do movimento se mostrava ainda incerta. Uma coisa era, contudo, inegável: nesse caso, ninguém blefava.

     O estado de guerra parecia ganhar os ânimos; a loucura, os espíritos. O ex-chefe olhava a cena com preocupação. Os que o haviam destituído, apesar de brigarem entre si, agora, estranhamente, tentavam serenar os âni-mos do cardume. Também sabiam que, na posição de postulantes a cargo maior, competia-lhes manter a cabeça fria e, mais do que ao resto do grupo, cumpria-lhes, para o bem de todos, buscar o equilíbrio entre razão e emoção. Lançar-se cegamente numa luta contra o jacaré e a jiboia era atitude emocional e pouco produtiva. Caso os dois répteis descessem para o rio — o que não estava, então, claro, nos seus planos —, seriam até destruídos. A quantidade ganharia da pura e simples força. Mas o que fazer com a vitória circunscrita àquele momento e àquele lugar? Como recuperar a caça guardada na margem? Como administrar, depois, as relações entre jacarés, jiboias e traíras? Era indispensável ter em mente todas as variantes.

      Quanto aos dois répteis, a atitude também era de ponderação e cautela. O jogo lhes fora favorável até ali; corno melhor administrar a vitória?

      Algumas traíras descontroladas e raivosas continuavam o seu espetáculo. O jacaré fingiu-se novamente de estátua, a jiboia simulou cair em sono profundo. Quem ousaria entrar então naquele rio? As traíras sabiam muito  bem que o jacaré e a jiboia precisavam da água, para o jacaré era até vital. Mais dia menos dia, lá estariam eles, ela deslizando na beira d'água ou na superfície do rio ou de um lago; ele, imerso, só com os olhos de fora, à espreita de um bicho aquático.

  

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 A descarga elétrica de um poraquê solitário veio abrindo caminho entre os milhões de dentes afiados. O peixe comprido e arredondado, lembrando uma cobra, nadava na superfície e seguia emitindo pequenos choques. O jacaré olhou a jiboia como querendo dizer "tem jeito de cobra, pode ajudar"; a jiboia, que abrira os olhos, se fez de desentendida, como dizendo "claro que não pode ajudar, é peixe", e fingiu dormir novamente. O poraquê monologava.

     — Vou mandar carga elétrica em cima desses que não saem da frente.

     — Você é feliz com a sua eletricidade?

     — Feliz? Muito mais que isso. Bem-aventurado. O peixe-elétrico se afastou, os dentes das traíras continuavam a brilhar, ameaçadores.

       Os dois índios davam nítidos sinais de fraqueza. Mas continuavam, quietos, a marcha sem fim.

    — O fogo pode ter empurrado a tribo pro outro lado do rio, Mucura.

    — Não adianta, Bakororo, a nossa terra é desse lado.

    — Então vamos continuar procurando a nossa nação, eles podem estar lá depois daquele pé de murici.

    — Pode ser, pode ser, tem que existir pelo menos um dos nossos.

    Lá em cima, o pequeno companheiro do casal mexia nervosamente a cabeça, o olhar pregado na dupla errante. Os dois índios mataram, com destreza e rapidez, uma paca que atravessou de repente o caminho. Dessa vez, entretanto, para assar a caça os índios conseguiram o fogo de um jeito que o macaquinho até já ouvira falar. Mucura se fingiu de morta. A imitação era tal que a carne do seu corpo começou a se estragar. Um urubu, trazendo o fogo nas asas, se aproximou e acendeu uma fogueira para assar o cadáver. Assim que Mucura foi posta sobre as chamas, ela deu um salto, afugentou o urubu e roubou o fogo. O sagui-leãozinho esfregou os olhos duas vezes. Não soube bem se sonhara, se era ilusão ou se a lenda se transformara em realidade. Mas que a paca estava sendo assada estava.

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