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Capítulo 15

    Hoje fui com outra roupa. "Ela veio vestida de mulher de televisão, corno nas novelas, gostei!", anunciou Galdino, com ar picante, assim que me viu.

     Antes, Felício dignou-se a falar comigo. "Queria conversar com você, mas não aqui na serraria", propôs, meio nervoso. Josimar e Galdino até então não tinham chegado. Combinamos para depois da aula. Iríamos nos encontrar na beira do rio. Acabou não havendo aula. A professora ainda não tinha voltado de São Paulo, e o seu colega do Rio, de óculos de aros dourados e fala mansa, estava com febre, suspeitaram de malária. Pelo sim pelo não, ele voltou esta manhã cedinho de teco-teco para Rio Branco e daí para o Rio de Janeiro, com troca de avião em Manaus, como especificou Galdino. Achei o professor simpático e sincero. Fiquei com pena de ele ter viajado. Reli o capítulo 6. Espero que tenha mesmo gostado.

     Desta feita, era a margem do rio que olhava para mim, e não eu para ela. Felício falava sem parar de músicos e artistas conhecidos, do seu futuro, da dor de dente na cadeira do dentista, de assuntos os mais diversos, sorria nervosamente, falou das aulas que não engrenavam. Comentou que tinha ingressado oficialmente em organização política que defendia os índios e a Amazônia. Só uns quinze minutos depois abordou o assunto Ellen Marinalva.

      Explicou que ela quer casar, ele não, que ela não é a mulher da sua vida, e por ai afora. Fingi que não entendia. Respondi que também já fora sondada para ingressar naquela organização política, e ponderei que estava totalmente de acordo; era fundamental para a sobrevivência da nossa região, das nossas florestas, do nosso povo. Juntos, de maneira organizada, seria mais fácil conseguir o bem-estar de todos.

     O nome de Ellen Marinalva voltou. Contei a respeito da conversa. Ele sabia, ela tinha relatado para ele. Ellen Marinalva — segundo Felício — acha que eu menti o tempo todo. Disse que sou falsa e que passo a vida arquitetando planos (disse "bolando") para afastá-la dele.

"Só porque estuda, aquela indiazinha de alma branca se acha a tal, ela me paga", ainda teria acrescentado. Como o Felício tem cara de índio como eu, não sei bem o que ele respondeu.

       Pensei nos meus sonhos de sempre. Eu tocava um instrumento, a natureza parava, uma onça vinha deitar docilmente a meus pés.

       Nossa conversa acabou meio num impasse. Tive a nítida impressão de que a margem do rio me olhava e exibia um sorriso de galhofa com o canto dos lábios. Senti raiva dos três. Do Felício, da Ellen Marinalva e da margem.

      De noitinha passou diante da minha porta um índio ostentando uma     pequena cruz de madeira. Estava nitidamente bêbado. Gritava, com a língua enrolada, que a salvação do mundo vai acontecer fora deste que conhecemos. O sol vai ficar preto, a lua vermelha, as estrelas vão cair, nos rios vai correr sangue e todos os mosquitos vão sair da floresta e invadir as casas. Depois um dragão medonho aparecerá e os homens vão se matar entre si. Só os bons irão para o novo mundo. O índio berrava que ele ia ser o pri-meiro a entrar no novo mundo. Aquele bêbado me assustou. Fiquei sentada no chão do quarto por um bom tempo agarrada às minhas pernas. Afastei o pensamento do índio bêbado e do louco Palmiro, que acabou aparecendo na minha cabeça. Senti falta da proteção da irmã Gicélia.

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