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Capítulo 2

   Ela deslizava por entre folhas secas, livrava-se de tocos e gravetos espinhentos, arrastava-se sobre troncos caídos, subia em árvores, descia, buscava alimento, a barriga roncava. É claro que aquele espetáculo, ali pertinho, não podia deixar de ser apreciado. Só ver aquelas gotas de sangue viscosas e nutritivas já dava água na boca. Vermelhas, gostosas, de abrir o apetite de qualquer um. De abrir o apetite e de dar inveja. Elas escorriam, abundantes, por entre os dentes do jacaré. O sáurio se lambia todo. Certo, não eram bem lambidas, mas movimentos bruscos, safanões com a cabeça comprida fazendo fluir para a sua boca enorme os evadidos pingos encarnados. O bom naco de carne fresca misturado com penas brancas ainda podia ser visto na goela do jacaré no indecoroso abre-e-fecha das mandíbulas.

    Um pássaro de plumagem branca e de asas pretas, conhecido como viuvinha, acompanhava o jacaré aonde quer que ele fosse. Tornara-se uma companhia inseparável. Para a viuvinha sempre havia parasitas, de espécies as mais diversas, que vinham se colar à crosta do réptil. Comida fácil e cativa. Nos momentos de grande preguiça do seu anfitrião, quando ele deixava aberta a imensa boca por um largo tempo, a viuvinha ousava até agarrar, sorrateiramente, com o bico pontudo, restos de alimentos presos entre os dentes do bicho então sonolento e inofensivo. O jacaré não se importava. Aquelas bicadinhas na gengiva; inclusive, aumentavam a preguiça e davam até mais sono.

    A viuvinha era muda. Mas o jacaré sabia, claro, que pensar ela pensava. E pensava mesmo. Um pensamento desencontrado, truncado, caótico. Mas pensava. Dessa vez não podia ser diferente. "Essa jibóia, ou sucuri que seja, toda metida a besta, vem fazer propostas para o jacaré, vai fazer logo uma pergunta. Tenho certeza. Perguntas do tipo quer isso, jacaré? Quer aquilo? Vamos trabalhar juntos, meu bichão de quatro patas? O meu amigo na certa vai cair na conversa. Ela vem propor sociedade e atrapalhar o banquete que a vida tranquila do jacaré me proporciona. Eu, uma simples ave até então feliz e de barriga cheia. Claro, não podia durar."

 

    Do alto das árvores descia um suave perfume fugido de orquídeas e de jasmins-da-amazônia agarrados aos troncos, as flores penduradas balançavam ao vento, seus caules cruzavam espigas de cores vivas saídas de bromélias estreladas. A fome e a carne fresca moviam e impulsionavam a jiboia. Estimulava-a, também, uma vontade estranha e doce de descoberta do outro e, quem sabe, até de descoberta de si própria. Talvez por isso, não demorou a aproximar-se do jacaré e dirigir-lhe a palavra.

— Desculpe interromper o seu almoço, mas qual é o local mais indicado para a caça nestas paragens? — perguntou com dissimulada descontração. A água na boca desencadeada pela visão das gotas de sangue continuava. A jiboia devia, porém, mostrar uma certa indiferença, caso contrário o colóquio podia nem acontecer. E a inveja então! Essa devia ficar encoberta, condição indispensável para que o jacaré abrisse a boca para conversar e não só para comer.

   Mas o jacaré, contrariamente aos anseios da jiboia, parecia pouco disposto a abrir um diálogo. Levou algum tempo para responder. Saboreava a carne fresca, saciava parte da fome e desfrutava antecipadamente as delícias da digestão sob o sol, o ventre fofo esparramado sobre as terras arenosas. Também! As lembranças desses momentos eram sempre das mais agradáveis. Até com os rivais da mesma espécie, jacarés como ele, com quem vivia às urras, a paz se instalava. Os diálogos costumavam se dar, nessas horas de digestão, num clima de franco entendimento.

— Você também é como eu? Se delicia na areia fofa, a barriga cheia coçando de prazer?

    As perguntas iam formuladas num tom exalando atenção, afeto e fraternidade. Tal beijos verbais.

 — Claro. E gosto, inclusive, de arrastar a pança para um Lido e para o outro, sentir as bichos gordinhos lá dentro.

   A resposta do rival vinha, igualmente, vazada nas mais altas doutrinas de civilidade.

 — Então por que às vezes brigamos?

   A indagação professava a mesma linha e construía-se coalhada de boas intenções.

— Pois é, não sei. Por quê, pergunto eu! A polidez se conservava e ia, até, ganhando força.

— Então, de hoje em diante vamos começar vida nova, concorda?

      O projeto de um mundo diferente, modelado pelo princípio da concórdia e da harmonia, irrompia com naturalidade.

— Claro. E gosto, inclusive, de arrastar a pança para um lado e para o outro, sentir os bichos gordinhos lá dentro.

     A resposta do rival vinha, igualmente, vazada nas mais altas doutrinas de civilidade.

— Então por que às vezes brigamos?

     A indagação professava a mesma linha e construía-se coalhada de boas intenções.

— Pois é, não sei. Por quê, pergunto eu!

A polidez se conservava e ia, até, ganhando força.

—Então, de hoje em diante vamos começar vida nova, concorda?

    O projeto de um mundo diferente, modelado pelo princípio da concórdia e da harmonia, irrompia com naturalidade.

— Claro, não só concordo corno aplaudo vivamente.

Vida nova. Não havia dúvidas. Era o desejo dos dois. Esse pacto consonante de vida, entretanto, durava só até a digestão terminar. Nova realidade trazida pelo estômago vazio logo surgia eivada de tapas, empurrões, mordidas, rabanadas e palavrões. O jacaré sabia. E agora uma cobra saída do fundo da floresta ameaçava as poucas horas tranqüilas que estavam por vir. Ora, tenha dó!

  A jibóia, porém, insistia com o olhar. Uma resposta qualquer se impunha.

— Não posso dar informações, estou ocupado, e acho que não fazemos parte da mesma sociedade — retorquiu, secamente, o jacaré, continuando a ruidosa deglutição.

     A recém-chegada, contudo, estava resolvida a levar até o fim o seu plano.

— Não entendi bem; o senhor não pode revelar o melhor lugar para a caça por achar que não fazemos parte do mesmo grupo ou por que está ocupado? persistiu a cobra, os olhos voltados com displicência para o céu encoberto por nuvens negras.

     O jacaré, pela primeira vez, encarou a nova vizinha. Estavam à beira de um lago revestido por viçosas e plácidas vitórias-régias, perto do Rio Amazonas.

      Corria pelo mato afora a história da Cobra Grande, que transforma em homem da cintura para cima. Dos seus olhos uma luz tão forte quanto o brilho do sol. A Cobra Grande vai atrás das mulheres que se banham nos rios. O resto do corpo, em forma de cobra, permanece escondido sob as águas. As mulheres se deixam seduzir, então outra Cobra Grande nasce, e assim por diante. Essa jibóia era uma delas?, interrogou-se o jacaré, antes de dignar-se a responder.

—Tanto faz, dá no mesmo, a resposta é uma só. Como já disse, não fazemos parte da mesma sociedade — acabou por resmungar o réptil, movendo com lentidão as patas e a longa cauda.

    A jiboia não se deu por vencida. Sentiu que a comunicação entre ambos tinha se estabelecido. Ele tinha mordido a isca. Ela, então, enroscou-se numa imbaúba, bocejou, viu, a curta distância, um tronco mais roliço e aconchegante de maçaranduba - do -pará, desenrolou-se, deslizou em silêncio absoluto até a imponente árvore, acomodou-se, confortável em quatro voltas e explicou:

— Somos répteis os dois, da mesma classe que as tartarugas e os lagartos.

      A explicação tinha saído num estilo professoral, lembrava lição de curso de ciências naturais. A própria formuladora da frase ficou surpresa com a pertinência das palavras e com o seu desempenho como professora.

      O jacaré parecia não ter ouvido. Terminava de engolira última porção de carne misturada com penas brancas , estava feito pedra, imóvel, estátua de si mesmo. As mandíbulas abertas, os olhos de vidro espelhavam as nuvens de chumbo prenunciando tempestade. Súbita e inesperadamente, entretanto, ele rompeu o longo silêncio:

— Sabe que vai chover?  Nuvens escuras, esse calor abafado, é chuva da grossa na certa.

      A cobra também tinha quem a seguisse por todos os lugares: um casal de macacos de pelagem pardacenta, com partes castanho-escuras, de braços longos e meio desarticulados, um rabo muito comprido, do tipo conhecido como macaco-aranha. A diferença com a viuvinha e o jacaré é que o casal de macacos não vivia em função da jiboia. O contrário, eles tinham por ela grande desprezo. É que a cobra, certo dia, quase devorava, o filhote do casal quando a família saciava placidamente a sede num iguarapé. O macaquinho ia direto goela abaixo da cobra não fora um providencial acidente de percurso — o imenso réptil se viu atacado por uma onça pintada. O filhote conseguiu escapar da cobra nos braços do pai. A cobra só logrou se desvencilhar da onça após renhida luta.

       O casal de macacos agora seguia a jiboia pelo alto das árvores, torcendo para que ela sofresse algum revés na vida. Cada vez que ela se movia, eles tagarelavam animados. “Lá vai ela, aquela sucuri, jiboia de uma figa, tomara que aconteça alguma coisa de grave com esse bicho horrível.” O filhote tinha ficado com o grupo. Ali estava seguro. Nada, claro, substituía o sentimento de segurança que experimentara por um tempo agarrado ao corpo da mãe. O pai contribuiu, de uma maneira ou de outra, para desfazer aquela harmonia. Mas — é o mais importante —salvara-o da bocarra da jiboia num gesto ágil e preciso.

        Um sagui-leãozinho desgarrado, eu conseguia se esconder até atrás de uma folha de árvore,  por isso diziam ser o menor macaco do mundo, seguia, pela ramagem e galhos finos, dois índios que, já há muitas luas, andavam desnorteados pela floresta. Os dois não abriam a boca, tinham os olhos fundos, um ar triste. Caminhavam rápido, sem saber bem para onde. Apenas caminhavam. Não era a primeira vez que passavam quase ao lado do jacaré e da jiboia. O diálogo era o sagui-leãozinho que ia imaginando lá de cima.

— Já passamos por essa trilha hoje de manhã — disse o homem , que o sagui resolveu chamar Bakororo.

— Acho que não, a trilha é parecida mas não é a mesma — retrucou a mulher, com nome de Mukura, nome também inventado pelo sagui-leãozinho.

— Já disse que passamos, reconheço a árvore grande, a que dá fruto doce — insistiu Bakororo.

O sagui não pôs uma resposta na boca fechada de Mucura. A insistência de Bakororo ecoou apenas no pen­samento do menor macaco do mundo.

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