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Capítulo 5

    Assistimos a esses cursos aos sábados e domingos no galpão da serraria porque a organização missionária nos ajuda com mantimentos, livros e dinheiro. Sem falar da pequena casa de madeira com luz e água encanada e televisão a que cada um tem direito; também oferecido pela organização (as casas ficam num grande terreno próprio da organização missionária, no fim da rua principal da cidade). E dizem até que, dependendo dos casos, podem nos oferecer estágio profissional nos Estados Unidos. Pelo menos é o que dizem. Temos consciência de que só nós quatro dispomos desses privilégios. Se eu descrevesse isso num romance, ninguém acreditaria. Essas aulas também vão valer como parte do primeiro ano do segundo grau da escola Chico Mendes, que ainda não foi inaugurada, como já disse. Deveria ter sido no final do ano passado, já estamos no século novo há um ano e até agora nada. (Consta que, finalmente, será inaugurada pelos governadores dos estados da região amazônica em setembro, na semana da pátria.) Não vejo a hora de ir para a escola nova.

     Continuo escrevendo sobre a disputa entre o jacaré e a jiboia contada por minha mãe com alívio e tensão ao mesmo tempo. De alguma maneira, essa lenda é a minha lenda. Não que eu esteja representada em algum dos bichos que aparecem descritos, não. Mais que isso. Eu sou todos aqueles animais ao mesmo tempo. Há um pouco de mim e da história da nação de minha mãe em cada personagem. É como uma colcha de retalhos de gente. Resolvi mostrar à professora o caderno aberto na cena em que a jiboia vê o jacaré devorando a garça e os seus filhotes. Ela leu com atenção. Chamou-me no final da aula e disse baixinho: "Você é uma moça muito bonita, Ana. Bonita mesmo. Esses cabelos lisos e tão negros roçando os ombros, sempre brilhantes, essa pele morena meio dourada, você tem os traços perfeitos. E é alta. Tenho um metro e sessenta e nove de altura e você é quase do meu tamanho. Agora, me diga: esse texto é mesmo seu? Foi realmente você quem o escreveu?" Me senti ultrajada. Não entendi a minha descrição física misturada com a dúvida sobre o texto. Senti o sangue esquentar minhas faces. Meu rosto com certeza mudou de cor. Aí mesmo é que ela deve ter achado que não tinha sido eu a autora daqueles parágrafos. Mas consegui reagir. "Claro que fui eu", respondi, entre indignada e surpresa. Ela não falou nada. Só balançou a cabeça. Para a Fabi, ela só pode ser "pirada".

     Deu vontade de chorar de revolta. Eu devia ter dito: "É um texto não só meu como da minha mãe, herdado do meu povo." Mas não consegui. Sabia que estava mentindo quanto à fidelidade àquela história. Meu texto se enfurnava por veredas que eu própria desconhecia, recorria a vocábulos que eu nem lembrava que já tinha conhecido um dia, pinçavam construções sintáticas que dormiam em algum lugar dentro de mim. Voltei para a carteira, recolhi a pasta, me despedi algo carrancuda e corri para meus três amigos, que aguardavam sentados num enorme tronco de mogno repousando soberano e retilíneo (aguardando ser transformado em tábuas) perto da serra circular, desligada nesses dias da semana. Fui embora me perguntando se, apesar de não ser do meu feitio, não devia ter falado grosso com a professora.

       Meu sonho voltou diferente na noite passada. Foi estranho. Eu me via impossibilitada de falar com a irmã Gicélia, as palavras não saiam. Apontava com o dedo objetos que se assemelhavam, de alguma maneira, ao que eu queria dizer, fazia desenhos no chão com um galho seco, os objetos e imagens me afastavam ainda mais do que eu pretendia explicar. Irmã Gicélia tentava, em vão, compreender. Minha mãe, num canto do sonho, sorria.

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