top of page

Capítulo 14

peixe-boi2.jpg

     O peixe que comandava o cardume finalmente se aproximou da margem em busca do diálogo, acatando a decisão do grupo. Fez as propostas que mais pareciam corresponder às ideias de segmento importante do seu cardume. Esboçou algumas explicações, negociou alguns detalhes e, segundo um membro do ajuntamento, aviltou e desclassificou quase todas as solicitações. Pediu menos do que se esperava. Talvez por isso o jacaré e a jiboia tenham logo respondido com clareza à sua reivindicação.

    — Podemos, sim, fazer uma concessão e deixar ao seu cardume urna pata, que acha, jiboia?

   — Estou perfeitamente de acordo. Urna pata. Cada um de nós dá a metade de uma, terão assim uma pata inteira. Dianteira, claro.

     A resposta em coro dos dois sócios parecia combinada desde muito tempo. Havia uma impressão de condescendência tipo "claro, entendemos muito bem, vocês merecem mesmo". Só que, dessa vez, para a traíra interlocutora também já era demais! Uma pata dianteira! Alguma rea-ção se impunha.

    — Mas somos milhões e milhões de traíras-pixunas, juntos somos até mais fortes que vocês.

   — Mais fortes? — gritaram ao mesmo tempo a jiboia e o jacaré.

    Os dois procuravam desqualificar o chefe daquele bando de peixes. E de pedinchões!

    — De uma certa maneira; é que somos mais numerosos, nossas mordidas podem acabar com os dois — replicou a traíra.

     Ela não tinha escolha. Devia manter a negociação tensa, manter a corda esticada. Tinha respondido com rapidez, procurava evitar vazios, que seriam, inevitavelmente, ela sabia, preenchidos com ameaças.

    — Cai fora daqui, cai fora daqui —repetiram, de novo em uníssono, os dois caçadores refestelados na beira do rio. O "cai fora" trazia, embutida, uma ameaça, como se dissessem "desapareça ou vai pagar caro". Os dois perdiam a paciência com aquela que vinha estragar os projetos de urna vida tranquila. O desmancha-prazeres só podia entender a linguagem da força.

libelula2.gif

Uma libélula interrompeu a discussão. Mal tocava a superfície do rio, como se a água estivesse pelando ou gelada. Era tal qual beijocas de carinho no enorme Amazonas. Logo outra libélula apareceu. No lugar onde uma beijava, a outra fazia o mesmo. O gesto vinha acompanhado de um diálogo trivial.

    — Vai beijando a água aí, que eu beijo aqui. Não, deixa que eu beijo no mesmo lugar.

    — Então tá, se você quiser, pode beijar. — E que prefiro a água já mais quentinha.

     — Aliás, hoje a água está uma delícia.

      A conversa foi se esgotando por si só.

      Os três animais acompanharam, hipnotizados — como se vissem urna libélula pela primeira vez —, os beijos hídricos. Mas a conversa entre a traíra e os dois amigos da beira do rio ainda não estava terminada.

      A traíra falava de urna parte rasa do rio, onde havia uma prainha; a jiboia e o jacaré, da margem. Não muito longe, um peixe-boi bufava, os bigodes lembrando pelos de porco-espinho. Os três observaram o estranho animal com o pensamento de sempre: "por que não escolhe de uma vez se quer ser boi ou peixe?" O peixe-boi também se manifestou, baixinho:   

    — Esses, cada vez que me vêem, perguntam se sou boi ou peixe. Ora bolas! Problema meu.

    Deu, então, urna borrifada na margem; o jacaré, a jiboia e a traíra acompanharam os pequenos jatos d'água saindo das ventas do animal aquático, que repetiu:

    — Ora bolas, seus desocupados, problema meu.

     O mamífero mergulhou, a traíra retomou a palavra:

     — Insisto, somos milhares e milhares de peixes, até milhões.

     O tom reivindicatório e a argumentação se mantinham. O líder dos peixes retesava mais um pouco a corda. Nessa altura dos acontecimentos, que outra opção havia?

     Os dois bichos da margem responderam com gestos grosseiros. Um silêncio cavernoso se instalou. Era de novo um jogo. Torre com torre, bispo com bispo, cavalo com cavalo, peão com peão. Como aniquilar todas as traíras? E, se analisado o problema do ponto de vista do cardume, como destruir o bicho com aquela couraça e o outro com aquela rapidez no deslizar do corpo comprido e escorregadio? Quem blefava?

     A viuvinha também se surpreendeu com a entrada em cena dos novos atores. "Essa francamente eu não esperava.

     Tanto peixe. Nem sei se a própria jiboia esperava. E também não sei se eles se dão conta da real dimensão da peixarada que está estacionada mais lá atrás. É bem feito pra jiboia, só que o jacaré também vai acabar sofrendo junto. Ainda que ele conseguisse me ouvir, no caso eu nem teria o que explicar. E tanta da traíra! E normalmente traíra vive em águas paradas, lagoas, coisas assim. Não entendo."

    O jacaré olhou para uma touceira próxima. Era timbó. As traíras temiam o veneno da seiva do timbó. Os homens das florestas — os mesmos que agora estavam sendo covardemente expulsos do seu mundo por homens vestidos e armados — agitavam e batiam a planta em partes do rio e de lagos, a água escurecia com o líquido escorrido do timbó, a paralisia era inevitável, os peixes subiam à superfície já quase mortos. Dali a serem moqueados junto com saúvas no fogo feito pelos índios, era um passo. Mas como um jacaré poderia usar as folhas venenosas do timbó com aquela traíra? Não, era impossível.

      A jiboia vislumbrou uma caçada, organizada por centenas e centenas de índios. Pirogas enxovalhavam a superfície dos rios. Milhares de pequenas flechas e lanças atiradas das canoas perfuravam os peixes, que se debatiam desordenadamente, transpassados pelas finas pontas de madeira ou de lascas de pedra. Penas de todas as cores na outra extremidade das flechas e lanças festejavam a vitória e indicavam o vencedor. O sorriso desenhado na boca da cobra se apagou quando o sonho, de repente, se foi. Os peixes estavam bem ali; e vivinhos.

sapo.jpg

     A traíra também imaginou cenas. O fogo poderia queimar esses répteis egoístas. Ela pensou na história que lhe haviam contado mil vezes. O urubu era dono do fogo. Um dia, um jovem índio que desejava oferecer uma fogueira para a sua tribo arquitetou um plano. Fingiu-se de morto. Já quase ia sendo assado na grelha pelo urubu, quando, subitamente, roubou o fogo que o assava e saiu em disparada. Foi perseguido pelo pássaro negro, mas conseguiu penetrar pelo oco de uma árvore caída, onde o urubu não conseguia entrar. Acabou saindo na beira do Amazonas. Na margem oposta estava a sua tribo. Não havia como atravessar o largo rio. O jovem índio implorou ajuda aos demais habitantes da floresta. Muitos se prontificaram a ajudar. Ele pôs, com delicadeza, o fogo nas costas de uma cobra a que primeiro oferecera auxílio —, pediu que ela atravessasse as águas, a cobra tentou mas morreu queimada ainda no meio do rio. Solicitou o mesmo ao camarão de água doce, cujo fim foi idêntico ao da cobra. Recorreu ao caranguejo dos manguezais amazônicos, que também só alcançou o meio do rio, antes de morrer queimado. Tentou outros animais, mas nenhum logrou atravessar o Amazonas. Morriam antes de chegar à outra margem. Só faltava o sapo-cururu. Era a última chance. O jovem tremeu ao ajeitar, com cuidado, o fogo nas costas do sapo. Deu-lhe orientações, conselhos, fez ponderações. E torceu. Torceu muito. O batráquio, com largos pulos sobre as águas, conseguiu, afinal, atravessar o rio com o fogo nas costas. O alívio foi grande, a alegria visível no semblante do jovem índio e do sapo. O cururu virou pajé, e a tribo pôde, desde então, assar a sua caça. E agora aquele fogo bem que poderia queimar esse jacaré e essa jiboia, pensou a traíra. Mas ela sabia que era ilusão. Os dois estavam ali, em carne e osso.

   Os dois, aliás, optaram por ignorar o peixe e conversavam.

  — Não gostaria de ter sempre comigo um casal de macacos me atazanando a paciência, como você tem. Deve ser horrível.

   — Eu já me acostumei com esses macacos, eles agora fazem parte de mim.

   — Mas que deve ser horrível deve.

  — E você? Já parou pra pensar na viuvinha que sempre te acompanha?

  — O que tem ela? É muda e não me incomoda, já disse. Ao contrário, me faz companhia. — Mas sabe-se lá o que ela está pensando!

    — Ela não me chateia, já disse. Você é que acaba me chateando.

   — Mas, jacaré, vai ver que ela só se aproveita de você. Quando não precisar mais, ela desaparece.

    — Estou certo que não, jiboia. Certíssimo.

     No fundo, tanto o jacaré quanto a jiboia sabiam que fingir não enxergar a traíra de pouco adiantava. Infelizmente para eles, a história não ia parar aí. O peixe continuava bem na frente. Os dois da margem ainda comentaram que, de costume, essas traíras dão mais em águas paradas, mas como tudo anda mudado com as queimadas, não há com que se surpreender.

     Uma fumaça forte irritou os olhos do sagui-leãozinho. Ele pôde ver que os dois índios também coçavam os olhos.

   — Tem mais queimada no outro lado do rio, Mucura.

   — Então vai tudo desaparecer.

   — E a gente vai comer o quê? — Só fumaça e carvão, Bakororo, só fumaça e carvão.

   — Os pés de cupuaçu e de pequiá vão desaparecer pra sempre?

   — Vão. E não só eles, todos. E os bichos também. E a água dos rios vai ficar suja e quente. Bakororo não insistiu, o sagui é que parecia chorar no seu lugar.

cupuaçu.jpg
pequiá.JPG
bottom of page