Profº Godofredo de Oliveira Neto
Ana e a margem do rio
Godofredo de Oliveira Neto
Capítulo 22
O macuco piou, o sabiá cantou, o uirapuru assobiou, a floresta inteira trinou. Fez-se dia. Os quatro permaneciam em seus postos, dois na margem do rio, dois nas águas barrentas. Todos com torcicolo ou cãibra ou formigamento.
A jiboia pensou nos macacos. Assim, fugia um pouco do impasse.
— Tomara que essa águia que tá piando lá no alto agarre esses macacos, ela consegue olhar para o sol sem piscar. Não deve ser difícil encontrar os dois macacos-aranha entre as folhagens das árvores — resmungou a cobra, deixando transparecer, finalmente, grande rancor.
— Quem tá gritando lá em cima não é águia, é um gavião dos grandes, jiboia — retrucou o jacaré.
— Mas conhece bem a floresta e tem muita força, não tem? — insistiu a cobra.
— Tem, isso é verdade, comadre. A resposta tranquilizava a sócia. O jacaré manteve-se calado por algum tempo. Refletia. Imaginou não o gavião agarrando e rasgando os macacos. Imaginou, antes, o casal de símios com rosto de gavião dizendo "Essa cobra vai acabar te enganando, jacaré". Bobagem. Pensamentos bobos, é, isso, pensamentos bobos. A cobra também refletia. Via com nitidez o gavião enfiando as garras nos macacos e decepando -lhes o corpo com o bico cortante. Só não continuou o pensamento porque passou a ver por todas as partes bichos com cabeça de águia que a olhavam, ameaçadores. Melhor voltar para a realidade e para o seu sócio.
— Acho que eles ganharam, jacaré, eles ganharam. Juntos, somos bons caçadores, mas não podemos ter tudo, — disse a jiboia, conformada.
— E, pode ser — grunhiu o jacaré.
— Acho melhor entregar a eles o que caçamos — continuou a cobra.
O jacaré não respondeu, mas seu olhar deixava passar resignação.
— Temos que dividir, temos que dividir — repetiu a jiboia. — E nem era preciso tudo isso, a traíra e o bagre meterem medo na gente, toda essa cena, pra quê?
O jacaré concordou com movimentos verticais de focinho.
O pássaro amigo do jacaré olhou-o nesse momento. Os olhares se cruzaram. O jacaré tentou adivinhar o que diziam aqueles olhos brilhantes. A ave entendeu. Mas ela só podia pensar. Nada mais. "É, agora tenta recuar no que der. Como já disse antes, ou pensei, você já perdeu. Fica de olho na cobra, mais até do que nos peixes. Eles, no fundo, não podem fazer nada contra você. E permita-me chamá-lo de burro."
A jiboia contou a história da pedra do princípio do mundo. Cobras de diferentes espécies se matavam com uma pedra. Um dia, uma jiboia dourada desceu dos ares e levou a pedra para o céu. A paz reinou para sempre entre esses animais. A pedra era a causadora das constantes disputas e guerras entre elas. O jacaré tentou ver a relação entre a pedra e a briga das cobras e a situação real por que estava passando ali. "Essas histórias de pedras só podem mesmo ser coisa de jiboia", pensou.
— Se eles não tivessem mostrado os dentes afiados e toda aquela força, teríamos também cedido, jiboia? — O jacaré voltara a dialogar.
— Se teríamos cedido não sei, mas, como passamos por essa experiência, a coisa tem que ser analisada. Tínhamos a obrigação de conhecer seus anseios e suas reivindicações. Infelizmente não conhecíamos. Agora vamos poder avaliar melhor a situação. Como já disse, acho que teria sido desnecessária toda essa agressiva demonstração de força. A floresta amazônica é nossa e deles, jacaré, bota bem isso na cabeça, nossa e deles, nossa e deles — soletrou, devagar, a cobra.
— É, é, acho que você tem razão, jiboia. Aprendemos uma lição. Mas vamos esperar só mais um pouco para ver se eles cansam e vão embora. Quem sabe?
O sabor de vitória pessoal e de comida à vontade custava a desaparecer da goela do jacaré.
— Vamos esperar só um pouquinho, então, jacaré, só um pouquinho. A jiboia, ainda que de forma mais frágil, também tentava impedir que aquele gostinho de lombo desaparecesse assim bobamente. É, esperar um pouquinho pra ver. Quem sabe? Não custava nada.
Rãs brincavam de mergulhar numa grande poça criada pela água da chuva, riam, gargalhavam. Formavam fila indiana, pulavam de um galho retorcido, a que ia saltar era invariavelmente empurrada pela que vinha logo depois. O jacaré fixou o espetáculo por um largo tempo.
Aquela cena arrastava o pensamento para a sua infância, as brincadeiras com os outros jacarezinhos. Lembrava-se com nitidez do episódio com o vizinho de areia, os dois ainda pequenos, na margem de um igarapé.
— Pula você primeiro. Era quase urna ordem, reforçada pela voz autoritária. -- Eu não, pula você. O amigo reagiu, mas em tom amistoso.
— Não, você primeiro, já disse.
A réplica era peremptória. O tom de voz autoritário se mantinha.
— Eu não.
O amigo respondeu já algo amedrontado, com ar interrogativo, mas ainda com urna sobra de coragem. E repetiu a negativa.
— Eu não.
Foi quando o amigo tinha dito "eu não" pela segunda vez que veio uma vontade irresistível de empurrá-lo como punição por se recusar a pular. E o fez com alguma força. O amigo se estatelou na água. Nada de coisa do outro mundo, mas a barrigada foi das boas. Só que o companheiro que caiu, em vez de rir, chorou. Chorou muito. De dor não podia ser, não tinha sido tombo para tanto. Sua mãe acabou vindo tirar satisfações, e a dele passou-lhe um sabão. Disseram que amigo que é amigo tem que ter respeito.
Um suspiro da jiboia retirou o jacaré das recordações. Os macacos davam gritinhos lá em cima. A fêmea, porém, já demonstrava cansaço. "Não é melhor acabar com essa corrida sem fim e viver a vida, meu velho? Vai então, se você quiser, eu fico e vou levar a minha vingança até o fim." A fêmea só olhou, algo consternada. Mas seguiria o marido ainda por algum tempo. Havia o filho-te. Ele, aliás, mal sabiam os pais, vivia feliz no bando. Corria sobre os galhos mais grossos, pendurava-se em cipós, saltitava dentro das ramagens, fazia cócegas nos amigos, catava bichinhos nos mais velhos, mostrava os dentes num sorriso ritmado, emitia gritinhos. "Daqui não saio nem por dez cachos de bananas", dizia, repetindo o pensamento que ouvia dos colegas. Os dois índios detiveram-se na beira do grande rio. Permaneceram estáticos por um longo tempo. O sagui-leãozinho assistia à cena do alto das árvores.
— Do outro lado é outro mundo, Bakororo.
— É, lá tem bicho, cobra-grande e coisas que não conhecemos.
— Mas pode até ser melhor. — É, Mucura, pode ser, pode ser.
Só no finalzinho da tarde os dois andarilhos deram as costas ao rio e voltaram a se embrenhar na floresta. A sensação cada vez mais forte de que nunca iam encontrar a sua tribo invadia, impetuosa, o casal de índios. O sagui, lá de cima, sentia. E até adivinhava o diálogo que ia na cabeça de Bakororo e Mucura.
— A gente está igual à garça-parda que quer matar o sono e não consegue.
— O maguari?
— É, Mucura, o maguari, que, mal começa a dormir, voa assustado.
— O bico dele é pesado demais, Bakororo, é por isso. A cabeça cai quando ele começa a dormir, por isso voa e nunca consegue descansar.
— E nós, Mucura, e nós?