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Capítulo 12

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        "Não pode agir apenas segundo as suas emoções, meu filho. Põe a razão também para funcionar. Assim, você continuará sorridente e feliz como sempre foi." As palavras do pai ecoaram, de repente, nos ouvidos do líder do cardume de traíras-pixunas. Na sua frente estavam o jacaré e a jiboia, mas o que escutava eram as frases pronunciadas com carinho. Recordava-se dos diálogos e das explicações, o pai sempre alegre.

    O chefe do cardume só acordou das lembranças com o repentino burburinho da água feito por possante rabanada de um tucunaré curioso que, as escamas brilhando, nadava rente à margem. E que o peixe, naturalmente, não havia gostado daquela aglomeração.

    — Sempre tem um grupo pra incomodar um nadador solitário. Como ninguém se manifestou, o tucunaré, com a barriga cheia de talos de capim-canarana, pôs um ponto final no pensamento, murmurando:

    — Tenho dito! O jacaré e a jiboia, enquanto isso, já se aproximavam do recanto da margem do Amazonas, onde, segundo repetidas explicações do primeiro, grande quantidade de animais da floresta costumava saciar a sede. A chuva tinha ido de todo embora, o sol voltado a brilhar.

   — Lá, na foz daquele afluente, jiboia, já dá até pra sentir o cheiro — disse o jacaré, apressando-se. Sua ansiedade e nervosismo eram visíveis. Ele fazia barulhos variados com a boca, nhec,nhuc,nhac, luc,loc,lic, movia, veemente, a cauda de um lado para o outro, como se dançasse ao som de um ritmo frenético, parava subitamente, tremia todo, balançava a cabeça, e retomava a marcha.

   — Estou sentindo o cheiro, estou sentindo o cheiro — repetiu a jiboia, também impaciente.

   — Você consegue sentir cheiro de alguma coisa? — perguntou o jacaré.

A jiboia não respondeu. Ela é que agora deu de ombros a sua maneira.

     A viuvinha, que acompanhava os dois sócios com passos curtos e rápidos, alternados por pequenas revoadas semelhantes a grandes e leves saltos, ironizava. "Muito obrigada, jacarezinho, de nada, jiboinha. Por que a gente não se uniu antes? Pois é, que coisa! Que coisa como? Que coisa, só isso. Ah, tá, jacaré, entendi! Entendeu o quê? Nada! Então tá, nada! Reage, meu amigo jacaré, reage."

     O cheiro era o aroma da tranquilidade provocado pela sedutora ideia de tomar de assalto farto depósito de carnes, do qual se tornariam os dois únicos donos. Mas não só o olfato se aguçava, também a audição, o gosto, o tato e a visão. Ambos sujeitavam-se com prazer à ditadura dos sentidos. Fartura e felicidade despontavam no horizonte próximo.

    Os dois répteis pareciam um só. Irmanados num projeto comum, projeto que lhes garantia alimentos em abundância e promessa de dias tranquilos.

     Um inconstante e irrequieto pedaço do céu se mexia em rota incerta. A borboleta de largas e generosas asas azuis pousou sobre uma folha escura e úmida. Como se não tivesse apreciado a textura da planta que a tinha acolhido, retomou o vôo vacilante; logo, outras borboletas surgiram, amarelas, rosa, alaranjadas, marrons, juntando-se num bando multicolorido e desaparecendo num taquaral que a brisa suavemente curvava. Os dois não chegaram a ouvir o falario das borboletas.

    — Adoro voar com amigas, pra lá e pra cá, desviando de troncos, galhos e bichos.

    — Eu também, só não gosto de vento forte que empurra a gente.

    — Claro, com vento forte, é melhor a gente pousar e ficar quietinha.

    — Já pensaram se a gente tivesse nascido como aqueles dois ali embaixo, caçando bicho na beira do rio?

     — O jacaré e a jiboia?

     — É, os dois.

     — Nem me fala!

     — Vamos passear dentro do taquaral. A borboleta azul liderava. O grito "vamos" saiu em coro. O jacaré e a jiboia acompanharam extasiados até o fim o volteio colorido recortando os ares e a mata. Logo puseram-se ao trabalho.

      Em pouco tempo, uma depressão da beira do rio, fomando uma espécie de grande bacia, foi se enchendo de porcos-do-mato, quatis, pacas, tamanduás, capivaras e — conforme tinha previsto o chefe das traíras — até uma anta, todos abatidos por potentes mandíbulas e abraços fatais, numa imbatível dobradinha entre o jacaré e a jiboia. "Cada lombinho", "cada filé", não cessavam de exclamar os dois répteis. E, assim, a quantidade de bichos capturados pelos dois sócios foi aumentando, aumentando, a ponto de nem ser mais possível contar quantos animais tinham sucumbido ao aperto assassino e às mandíbulas mortíferas.

    — Desde a primeira hora eu sabia que juntos nós éramos invencíveis, jiboia.

    — Eu também, jacaré, eu também. Notei que você me recebeu de braços abertos desde o primeiro momento.

    — E claro, comadre. Não podia ser diferente. Olhei e disse: essa é a irmã de que eu precisava como sócia.

    — Lembra corno a nossa conversa foi amável, sincera e fraterna, compadre?

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    — Claro que lembro. Olha ali, jiboia, é mais um porco-do-mato, pega! — Pronto, jacaré, pronto. E lá vêm outros bichos, nunca vi tantos na minha vida. Vamos ter um guarda-comida pra vida toda.

    — Não é um guarda-comida, jiboia, é um imenso depósito só nosso. Estamos providos com abundância.

    — E pra sempre.

    — E, pra sempre.

     A opulência batera-lhes à porta. Aquela nutrida despensa garantia barriga cheia e sossego por um bom tempo. Os dois caçadores abraçaram-se, quer dizer, mais propriamente o jacaré, claro. A jiboia deu urna volta de corpo no sócio e apertou-o com afeto.

      Um boto nadava em direção às nascentes do rio. As-sobiava alegremente. Alguém do cardume de traíras co-mentou que, pela pressa, ele devia estar atrasado para a cerimônia de transformação em gente na margem do Amazonas. Ia, na certa, levar alegria a muitas mulheres solteiras. Segundo observações de um dos mais idosos membros do ajuntamento de traíras, o boto, pela batida da cauda e das nadadeiras, nadava contente. Nem eram bem batidas, mas trejeitos exagerados, quase um balé aquático acompanhado por um sorriso fixo na cara de felicida-de, alternado pelos assobios.

   — Os dois egoístas da beira do rio já vão começar a comer, jogaram tudo na margem, fora do nosso alcance, claro, corno sempre — murmurou o líder do cardume.

      A reflexão, mais uma vez, passava desalento. Não propriamente desalento, mas um tipo de fatalidade que foi logo destacado pelo peixe dentuço e de peito estufado através da observação "o chefe adora dizer como sempre, como sempre pra ele, ele é que quer assim!". O líder percebeu o comentário, avaliou quantos, pelos gestos da boca ou pelo mexer de olhos, concordavam com a crítica. Os partidários do peixe descontente eram ainda em número relativamente pequeno, dava para mantê-los sob controle.

     Houve um início de briga mais para o fundo do cardume, dois jovens se batiam, ninguém soube bem por que razão, disseram que um tinha chamado o outro de bebê chorão, alguns quiseram apartar, a briga aumentou, logo se formaram dois grupos que mordiam, davam rabanadas, um dos grupos foi recebendo reforços, o grupo menor saiu em desabalada carreira, nadava dando guinadas bruscas, passou sob um velho tronco apodrecendo no fundo do rio, embrenhou-se entre capins aquáticos que cresciam nas entradas dos igarapés, desviou de algumas pedras. O tumulto só acabou com a intervenção severa do chefe.

     A distância, os dois jovens ainda se diziam desaforos baixinho com palavras bem articuladas com a boca para que a mensagem fosse entendida.

     — Você me paga, seu peixinho de nada.

     — Você é que me paga, bebê chorão.

    — Vou arrancar as tuas barbatanas.

    — E eu o teu bigodinho de bobo alegre.

     O diálogo a distância foi interrompido pelo deslocamento natural do cardume, que fez com que os dois antagonistas se perdessem de vista.

     Para acalmar os jovens mais nervosos, um peixe contou histórias. Explicou a origem do sol. Um índio forte bebeu urucum fervendo, era festa da tribo, ficou de cara vermelha e subiu para o céu já transformado em sol. O peixe contador de histórias relatou, ainda, como o trovão deu origem ao mundo. Ele criou primeiro a terra, fez, em seguida, o grande lago de água salgada, depois criou o Rio Amazonas, as plantas e as traíras. Só então deu forma aos demais bichos.

     Com os ânimos serenados, a discussão pôde continuar.

    — A jiboia tem um bezerro inteiro bem oculto em algum lugar, e o jacaré um monte de pássaros mortos guardados em algum esconderijo — lembrou alguém.

    — Um de nós deveria tentar fazer com que soubessem disso, talvez assim brigassem entre eles — ponderou outro.

     A ideia de provocar a discórdia entre o jacaré e a jiboia sugerida havia pouco pela traíra carrancuda e mal-humorada voltava. Mas, também dessa vez, foi logo rejeitada pelo conceito de tradição e destino.

    — Cada um sabe que o outro está escondendo alguma coisa, mas finge que não, sempre foi assim, não adianta fazer nada — considerou uma jovem com um dente quebrado e a gengiva enegrecida.

    — Só o diálogo interessa — asseverou aos berros a que já tinha se pronunciado nesse sentido, acompanhando o pensamento do líder do cardume de traíras.

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      A voz saiu esganiçada quando ela disse "interessa", parecia uivo de fêmea de cachorro-do-mato. Alguns riram. A traíra se enfezou, postou-se frente aos que haviam zombado do seu "interessa" ondulado e estranho, alguns intervieram e a acalmaram. A maioria dos peixes ainda optava pela via pacífica.

     De qualquer maneira, subitamente todos se imobilizaram mesmo. Passava, lento, um cardume de piranhas. Melhor não brincar com esses peixes. Só voltaram a falar quando o cardume desapareceu.

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Bakororo e Mucura iam fatigados, sem dizer palavra. O sagüi olhava para eles com pesar.

    — Deita, Mucura, deita aí. Eu vou olhar um pouco mais à frente pra ver se encontro alguém. Acho que ouvi barulho lá atrás daquele pé de camu-camu.

    — Não, Bakororo, eu vou junto. Não sossego enquanto não encontrar o meu povo. O macaquinho notou os pés dos dois índios feridos de tantas e tantas luas de caminhadas sem rumo.

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