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Capítulo 27

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    Josimar me falou que talvez Felício não estivesse em casa, devia ter ido visitar um conhecido que estava doente. Felício tinha saído levando urna garrafa com óleo extraído da copaibeira que resiste à motosserra atrás das nossas casas. Josimar não sabia onde. Já anoitecia quando fui à beira do rio. A margem em frente se tornava uma massa negra, mas ainda era possível ver o recorte irregular das copas das árvores sobre o céu se apagando. Alguém, ao longe, batia com o facão na quina da sapopema. Não sei se forcei a leitura ou não. O fato é que aqueles garranchos das árvores escreviam num código diferente. Escreviam, com caligrafia própria, outra realidade. Os garranchos queriam significar algo. Aquelas linhas, intensificadas pelo voo incerto dos morcegos, diziam que eu não viajasse. Que ficasse em Xapuri e dali mesmo fizesse ecoar a nossa voz. E, ficando, poderia ajudar a reforçar a identidade do Brasil. Afastei-me (isso tudo foi algumas poucas horas atrás) da margem, me virei, olhei mais urna vez para aquela faixa escura além das águas, quase desaparecida na escuridão, e me pareceu que ela fazia "sim, fica", com uma cabeça imaginária. Senti arrepios.

    Três a um.

     Voltei para casa. Reparei que perto da entrada brotava um pezinho de macaxeira. Palmiro? Superstição minha? Quando abri a porta da frente, vi que a televisão exibia urna reportagem sobre a aculturação dos índios da amazônia. Corri, aumentei o volume. O fundo musical era uma música de Beethoven. Senti um aperto no peito. Pensei que eu fosse aparecer. Bobagem! Ninguém tinha me filmado, só se fosse um milagre. Mas me senti orgulhosa. De mim, da minha mãe, dos Nauá, da floresta amazônica. Logo senti vergonha. As imagens da degradação humana eram terríveis. Desliguei o aparelho no ato. E chorei. Acho que chorei de um jeito que nunca tinha chorado. Não conseguia mais parar. Me esticava na cama chorando, levantava chorando, sentava na pequena poltrona aos prantos, me olhava no espelho soluçando. Em certa hora, deitada de novo na cama, com o travesseiro de paina de sumaumeira encharcado, senti uma vontade medonha de me olhar mais uma vez no espelho. Levantei. Estava horrível. Meu rosto disforme. Parecia ode um bicho.

 

Quis falar e não encontrava palavras. Tinha a impressão de que de urna hora para a outra aquela imagem no espelho ia dar um urro, e não articular palavras.

     Agora são onze e meia da noite. Escrevi o último capitulo em nem bem uma hora. Felício está aqui a meu lado. Chegou faz uma hora. Trouxe urna dezena de pétalas de flores da floresta, de todas as cores, e espalhou-as pelo chão da pequena sala. Diz que dá sorte. Soube que eu o procurara como urna louca. Irmã Gicélia tinha razão quanto ao afeto. A gente se abraçou longamente. E aconteceram os beijos que eu tanto esperava e que Fabi tanto descrevia; com detalhes. Corno Fabi, também senti um friozinho percorrer meu corpo de cima para baixo e de baixo para cima. Os lábios de Felício são quentes, macios e gordinhos. Ele disse o mesmo dos meus. Nem vou falar sobre outros gestos de ternura na minha casa há pouco com ele. Ele contou que a Ellen Marinalva está mesmo namorando o Galdino.

     E é claro que Felício prefere que eu fique em Xapuri.

     Três a dois.

     E eu também acho; obviamente, melhor ficar.

     Três a três.

      Foi o próprio Felício quem fez a proposta de desempate. Que a organização missionária encontrasse uma empresa encarregada de divulgar essa história em todo o mundo. O texto da minha mãe podia ir para Nova York, Rio de Janeiro, São Paulo. Ele argumentaria por mim. De povo para povo. Que se transformasse na tribuna de que fala a irmã Gicélia. Eu, em pessoa, não tinha por que ir. Para quê? Tempo é o que não nos falta para viajar um dia. Acresça-se a isso — como sabem — o fato de que a professora Elza já havia dito várias e várias vezes que era desejo, justamente, da organização missionária e de várias organizações brasileiras e americanas publicar a história que estou acabando de escrever no caderno de capa brilhante com desenho do mapa do Brasil. De qualquer maneira, se eu consultasse a Fabi, teria dado mesmo quatro a três para o Brasil. Tenho certeza de que ela iria dizer que, se fosse preciso, voltaria a usar a cor natural do cabelo para que eu ficasse por aqui. Amanhã vou ao hotel (ao lado do novo trabalho de Fabi, aproveito, faço uma visitinha e lhe explico tudo) comunicar aos homens de gravata que, infelizmente, decidi não ir agora. Um outro dia talvez. Agradeço o convi-te, estou envaidecida, mas no momento quero viver com o Felício, conversar com os meus amigos Josimar e Galdino, ir ao cinema no salão paroquial com Fabiana Suzan, jogar xadrez com a irmã Gicélia, comer caldeirada de tucunaré com pimenta, de preferência murupi, e costela de tambaqui na brasa. Ser professora primária em Xapuri, lutar pela floresta amazônica e pelos povos índigenas da região. Levem o texto, se quiserem. Ele vai sem título.

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