Profº Godofredo de Oliveira Neto
Ana e a margem do rio
Godofredo de Oliveira Neto
Capítulo 17
Lancei-me como nunca à escrita. A história contada por minha mãe parece às vezes longe, agora é a minha história. Em certas horas, contudo, palavras pronunciadas por ela com toda a nitidez invadem o texto e dirigem a narração. Subitamente, ela para de contar, diz "esta é a minha versão da história, você deve contar a sua, minha filha, que vai sair necessariamente diferente". Daí irrompem fatos novos, seres mitológicos, descrições inesperadas, desdobramento de cenas.
A professora voltou. Perguntou "como vão os seus contos, a sua ficção" (virou ficção!). Respondi "bem". "Gostaria de ver mais uns trechos, quando você pode me mostrar?", continuou ela. Eu ia responder "nunca, a ficção, como a senhora diz, se tornou o meu diário, diário íntimo". Mas não tive coragem. Balbuciei "na próxima aula".
Hoje ela falou de violência urbana durante um bom tempo, descreveu as possíveis causas, criticou o funcionamento da justiça, a corrupção que há séculos assola o país. Tudo temperado com o seu típico sotaque. Deu algumas explicações de matemática, "grandes linhas". Os erros em português parece que diminuíram. Mas no meio da aula ela se enganou novamente no gênero de uma palavra, não me lembro bem qual, acho que foi árvore. Pela primeira vez, falou um pouco de si própria. Explicou que não era americana, como diziam. É da África do Sul; conheceu o apartheid, sistema contra o qual sempre se bateu, lutou ao lado dos negros e por isso nunca foi perdoada pelas autoridades do seu país, emigrou para os Estados Unidos e ingressou numa associação de defesa dos direitos humanos. Senti um pouco de remorso. À noite, passei horas na janela olhando a escuridão, o quiriri aumentou o sentimento de culpa em relação à professora. Grilos cricrilavam na floresta tal estrelas rumorosas.
O Josimar estava maluco ao comentar que a professora (chama-se Elza, havia dito já no primeiro dia, mas só hoje esse nome colou-se de fato a uma pessoa) ia enganar a gente publicando a história em seu próprio nome etc.
Coitada. Ela não parece nada interesseira, muito menos perversa. Parece, isso sim, ingênua. Mas agora acho que não há mais como entregar parte da minha vida no final do curso.
Na rua principal da cidade houve uma batida de carros. São poucos circulando, mas mesmo assim aconteceu o esbarrão. Foi perto do cinema paroquial. O proprietário do carro mais novo chamou o dono de uma velha caminhonete de todos os nomes. Quase saíram na briga. Algumas pessoas conseguiram apartar. Assisti a tudo de longe. Um deles eu conheço, o da caminhonete. E o entregador de bujões de gás. Coitado. Ele não teve culpa e quase apanhou. Eu tinha ido ao salão da igreja, com a Fabi, para urna reunião de apoio à demarcação das terras índígenas, na verdade um almoço com peixe comido na mumbaca, piracuí e tacacá à vontade, tudo regado a suco de cajá. Falou-se muito do desaparecimento do filho de um assessor do prefeito, que teria sido engolido por uma enorme piraíba no rio da cidade.
Os organizadores montaram no pátio um cordão de bichos. O sacristão fez o papel do caçador. A Fabi foi escolhida como rainha. E saiu-se muito bem. "Agora, senhor caçador, como punição, o senhor tem que ressuscitar o jacamim." Eu fui escolhida como o médico que não conseguia ressuscitar o pássaro de jeito nenhum. O pajé foi um conhecido nosso da época de escola, o João. Também se saiu bem. Pulava que nem cabrito, coberto com uma manta de penas de todas as cores. Teve música e tudo. E o jacamim viveu de novo!
Voltei ao meu traje normal. Jeans, camiseta, tênis. A mestra às vezes me olha mais demoradamente com fisionomia embevecida, como se eu fosse a Nossa Senhora. Felicio me mandou um bilhetinho durante a aula com frases bonitas e amorosas. Respondi no mesmo tom. Elza viu quando trocamos os bilhetinhos. Mas fingiu não ver.