top of page

Capítulo 20

TAMBAQUI1.jpg

    Um tambaqui, empanturrado de sococó, aproximou-se do bagre, olharam-se, o tambaqui acabou batendo sem querer numa pedra. A pedra se moveu. A tartaruga-d'água não gostou do peixe estabanado. Fez cara feia. O peixe no início pediu desculpas, as frutas pesavam na barriga, atrapalhavam os movimentos, e não podia saber que era um bicho vivo, parecia uma pedra dentro d'água, tinha limo e tudo. A tartaruga não cedia, continuava dizendo "mas devia ter tido mais cuidado". O peixe respondeu "já disse que pensei que fosse uma pedra".

    Logo, logo, os dois se atracaram, se davam mordidas, a tartaruga tapas, o peixe rabanadas. O bagre virou os olhos, a água borbulhava com os golpes que os dois enraivecidos se desfechavam, outros bagres apareceram, formou-se urna roda em volta dos combatentes. Talvez por conta do grande número de espectadores, a tartaruga-d'água e o tambaqui, de repente, pararam a luta, envergonhados ou exaustos. Ou, quem sabe, por se darem conta, súbito, da reação exagerada causada por um simples e banal esbarrão. Pediram desculpas, se abraçaram emocionados e se retiraram em direções opostas. O bagre, que se afastara ligeiramente, voltou para o ponto do rio de onde vinha negociando com o jacaré e a jiboia. A viuvinha sentia que, como tinha prognosticado assim que viu a jiboia pela primeira vez, os seus dias de fartura com o jacaré estavam contados. A cobra estava ali, pertinho dela. Parecia pensar muito, mas não mais que a viuvinha. "Com certeza está pensando na infância, nas lições de casa não aprendidas, conselhos não acatados. Mas não acredito em urna só palavra ou pensamento saindo dessa cabeça horripilante. Aliás, tudo o que estou pensando sobre a jiboia talvez se aplique ao jacaré."

      Os dois da terra firme ainda tentavam encontrar meios para enfrentar o bagre. Há pouco, piara o inhambu. Da moça inhambu tinha nascido um ser que ludibriava todo mundo, contava uma lenda dos índios do alto Amazonas.

    

INHAMBU4.JPG

A mãe inhambu não pôde amamentar, diziam. O filho foi alimentado com mel e leite trazido por bandos de beija-flores e borboletas. Tomou-se muito inteligente. Talvez o filho da inhambu pudesse, de alguma maneira, enganar o bagre. Mas por que razão faria esse favor? Não, não adiantava. E o inhambu que instantes atrás tinha piado já devia estar longe. Ademais, era muito provável que nem fosse a moça inhambu.

      Pensaram nos cogumelos. Os índios morriam de medo de cogumelos fosforescentes. A jiboia já tinha visto índio desgarrado de noite, gritando, com pavor desses urupês. Colher um urupê dos grandes, mostrar ao bagre, ele teria medo? Bobagem, claro que não. E pedir ajuda ao pajé dos índios da floresta? Ele consegue curar doenças, passar enfermidade aos adversários, fazer chover, inchar a barriga do inimigo até estourar. Agora estava tentando salvar o seu povo dos que vieram de outras terras para exterminar a tribo inteira, demônios vestidos com panos coloridos e armados até os dentes, cortando árvores, arrasando a floresta inteira com motosserras. O pajé ia ter tempo pra ajudar um jacaré e uma jiboia? E se o pajé pertencia a outro universo, como chegar a ele? Impossível, também não adiantava.

    

URUPÊS.jpg

O jacaré e a jiboia cogitaram, ainda, em evocar o demônio dos índios, o Jurupari, mas como? E de que maneira recorrer a outros seres mágicos da floresta, como o Mapinguari, o Saci-Pererê, o Curupira, ou o Macunaíma, em busca de ajuda? Não tinha jeito! E mesmo se tivesse, os seres mágicos concordariam em ajudá-los?

JURUPARI.jpg
Jururpari
mapinguari2.jpg
Mapinguari
CURUPIRA.jpg
Cururpira
saci.gif
Saci Pererê

    Não havia meios de dar um desenlace favorável àquela situação. Os dois se davam conta disso de modo muito claro. Analisaram todas as hipóteses. Pensaram nos mais velhos, nos conselhos dos sábios e estudiosos. Naqueles que sempre recomendavam fosse realçada a grandeza dos jacarés e das jiboias; que diziam que a força bruta, se servia para competições amistosas, não tinha o mínimo valor para a vida elevada e sublime dos bichos.

     O pássaro branco e preto não arredava pé. "Só tem duas saídas. Ou briga ou cede. Em qualquer das duas situações, você vai perder mesmo, jacaré. Agora é tentar limitar os estragos, tentar perder o mínimo."

      — Nós não podemos viver sem entrar nessas águas, principalmente você, e, no fundo, talvez os bagres e as traíras tenham razão — sentenciou com clareza a jiboia, voltando o olhar para a margem oposta do rio.

     — Como, jiboia? — perguntou o jacaré, falsamente surpreso.

     — Eu disse que talvez eles tenham razão. — Acha mesmo, jiboia?

      O réptil duvidava. Um dúvida lúdica que relembrava, em alguns aspectos, o clima e o discurso do início do encontro dos dois à beira do lago coberto por vitórias-régias.

     — Você não tem aves mortas guardadas em algum lugar? — prosseguiu a jiboia.

     O jacaré mexeu-se, incomodado, e respondeu:

       — Pássaros?

       — E, pássaros — insistiu a cobra.

       A insolência da colega passou obrigatoriamente des-percebida. Não havia mais espaço nele para pensar nessas bobagens de mandonismo e de prepotência. O epílogo se aproximava.

       — Pássaros, é, "pás-sa-ros", entendo. Tenho sim — gaguejou o jacaré.

       Mas ele também dispunha de armas muito parecidas. Logo se recompôs do desconforto e indagou:

      — E você, não tem nada escondido em algum lugar?

      — Escondido? O petulante, desaforado e atrevido agora era ele.

      — É, comadre jiboia, escondido, eu disse "es-con-di-do".

       A jiboia revirou os olhos, lambeu parte do corpo, olhou os ipês do outro lado, as nuvens encarneiradas, as pedras do rio, e revelou, tentando esconder o mal-estar:

     — Tenho alguma coisa sim, acho que é um bezerro, ou outro bicho, nem lembro bem.

      Bakororo e Mucura ainda não tinham perdido as esperanças. O sagui-leãozinho bem sabia.

       — Naquela última vez não tinha ninguém, mas dessa vez pode ser que sim.

       — Acho que desta vez, Mucura, a nossa tribo está logo ali comendo tucumã, taperebá e peixe assado no fogo.

       — E rindo, dançando e festejando.

       Os dois seguiam calados, os pés em carne viva. Pela frente, só o verde. O sagui-leãozinho via melhor lá de cima.

       — O que vai ser de nós, Mucura?   

 

      Ela estancou a marcha e respondeu com um olhar longo e profundo. Nada mais. Ela ia dizer "um dia o mal se voltará contra quem nos destrói". Mas Mucura apenas respondeu com os olhos. O sagui-leãozinho só conseguiu imaginar um grande silêncio no pensamento dos índios. Silêncio impossível, naquela hora, de ser preenchido com palavras.

bottom of page