ENSAIO DA PROFª VERA DIAS
De que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes, com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e majestosos Infernos do Orgulho, o coração lacerado, ouvindo sempre por toda a parte exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar [...] E, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados em busca de outros braços que me abrigassem; e, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados que já nem mesmo a milenária cruz do Sonhador da Judeia encontravam para repousarem pregados e dilacerados, fui caminhando, caminhando, sempre com um nome estranho convulsamente murmurado nos lábios, um nome augusto que eu encontrara não sei em que Mistério, não sei em que prodígios de Investigação e de Pensamento profundo: — o sagrado nome da Arte, virginal e circundada de loureirais e mirtos e palmas verdes e hosanas, por entre constelações.
João da Cruz e Sousa
Esta epígrafe magnífica abre a nova edição do livro Marcelino, obra também de autoria de Godofredo de Oliveira Neto, foi lançada na sua versão portuguesa pela Editora Imã, durante o FOLIO durante o Festival Internacional Literário de Óbidos em Portugal, ocorrida no período de 27 de setembro a 7 de outubro de 2018. Godofredo a extraiu de Emparedado” sendo ela a composição que encerra o livro Evocações, considerada a síntese da obra de Cruz e Sousa. E ele teve uma boa razão para isso, pois a crítica é unânime em reconhecer no “Emparedado” o drama do artista negro que ansiava por se livrar dos grilhões que impediam sua ascensão social e a divulgação de sua arte, até mesmo o capítulo mais significativo [de Evocações], aquele em que Cruz e Sousa mais se confessa, no qual fotografa toda a sua angústia e sua revolta, é o do ‘Emparedado’. Páginas quase que de ódio, onde não ataca ninguém, mas acusa e responsabiliza o meio, o ambiente eivado de preconceito, intrigas e perversidades que o desamparou.
Esse livro é específico sobre a vida e a obra desse grande brasileiro, conterrâneo de Godofredo, que recebeu a alcunha de Dante Negro ou Cisne Negro e foi um dos precursores do simbolismo no Brasil. Seu nome completo era João da Cruz, filho de escravos alforriados, nascido em 1862 na cidade de Desterro (atual capital de Santa Catarina, Florianópolis) e recebeu uma educação refinada por parte dos antigos proprietários de seus pais, o marechal Guilherme Xavier de Sousa, de quem adotou o nome de família, Sousa. “A despeito do grande talento poético, sofreu com o preconceito por ser negro, sendo preterido em várias oportunidades, como quando foi nomeado promotor público em Laguna, deixando de assumir o cargo por causa de sua cor” (BILAC; SOUSA; ANJOS, 2010, p. 118).
Godofredo, em minha opinião como pesquisadora e estudiosa da obra do poeta do simbolismo brasileiro, fez justiça a seu biografado. Tanto que a Profª Carina Ferreira Lessa, que escreveu sua apresentação para a obra, colocada nas orelhas do livro, fecha a mesma magistralmente com a declaração :
“Godofredo aqui, liberta o poeta para sempre da acusação de ter- se omitido das questões negras da época . Com uma linguagem autêntica e dinâmica, este perfil biográfico não deixa espaço para a respiração. Ao final, sentimos com toda a força a liberdade do “poeta alforriado”.
De fato, Godofredo traçou um retrato irretocável, delicado e sensível desse poeta nas 158 páginas de compõem o livro.
A julgar pelo modo como ele mesmo se definiu, João da Cruz e Sousa, o poeta mais importante do simbolismo brasileiro, foi um homem emparedado. Viveu em estado de luta e se acostumou a conviver com o fracasso e a dor. Poeta, negro e filho de escravos, em sua curta e dolorosa vida (1861-1898).
Logo na abertura do livro, Godofredo já revela as profundas ligações que tem com o poeta. Assim ele demonstrou os fortes laços que os une com esse parágrafo :
Tenho o hábito de usar como epígrafe de meus romances passagens retiradas da obra de Cruz e Sousa, autor com quem convivi espiritualmente desde a mais tenra infância. No último livro, Marcelino, o personagem do mesmo nome, pescador humilde das praias de Florianópolis dos anos 40 do século XX, é chamado pelo narrador, de Cruz e Sousa dos Mares. A trajetória e a alma do poeta simbolista guiaram, penetraram e fecundaram a folha branca e a tela do computador durante a elaboração da trajetória do pescador Marcelino. O romance, não por acaso, abre com trecho do “Emparedado”, de Cruz e Sousa. (NETO, Godofredo de Oliveira, p.13)
Com essa introdução e o seguimento da narrativa, fica patente desde logo que o autor conviveu com ele desde a mais tenra infância. À medida que vamos acompanhando página a página a exposição de Godofredo da vida de Cruz e Sousa prendemos a respiração e começamos a sentir toda miséria, doença e preconceito que o açoitavam. Um misto de dor e angústia perpassa por nosso espírito e começamos a pressentir o final trágico, chegando até a ser previsível, do final de sua existência.
Não posso deixar de mencionar outro ponto alto do livro, presente na página 143, no qual Godofredo colocou uma fotografia em preto e branco de Cruz e Sousa, parecendo transmitir uma atitude desafiadora. Essa fotografia, tal como aparece no número da página mencionada, apresenta aos leitores, a meu ver, pouca nitidez. Como pesquisadora acostumada a lidar com aplicativos que tratam melhor a imagem conferindo melhor qualidade a elas, melhorei sua nitidez, colori e a ampliei com a finalidade de discutir seus principais aspectos a seguir.
Fotografia 1 - Cruz e Sousa posa para a câmera em atitude defensiva aos 22 anos.
De acordo com os pesquisadores RECTOR (1985) e CORRAZE (1982), estudiosos da linguagem não-verbal expressa pelas posturas corporais, a barreira formada pelos dois braços cruzados sobre o peito é uma tentativa inconsciente de bloquear tudo o que percebemos como ameaças ou circunstâncias indesejáveis.
Uma coisa é certa, segundo afirmam os mesmos estudiosos citados que, quando uma pessoa assume uma postura nervosa, negativa ou defensiva, é bem possível que cruze os braços firmemente sobre o peito, mostrando que se sente ameaçada como é o caso do poeta nesta foto.
Assim sendo, chego à conclusão ao examinar e refletir na pose assumida na foto por Cruz e Sousa ao olhar para a câmera do fotógrafo, que ele se colocou numa posição defensiva, como se quisesse se proteger de levar um soco. E não era para menos. Ao longo de toda a sua trajetória de vida, ao lermos a obra de Godofredo, verificamos que todas as agruras que atravessou, para ele seu sangue negro, constituíram para ele por si só uma barreira intransponível para sua ascensão social.
A poesia de Cruz e Souza evocava a brutalidade com que o mundo o tratava e que tornou seu espírito agitado e inquieto. Cito aqui um poema intitulado “Ausência misteriosa", presente em seu livro Faróis (1900), ele registra seu olhar perplexo:
E em toda casa, nos objetos, erra Um sentimento que não é da Terra
E que eu mudo e sozinho vou sonhando..."
A face desafiadora e dura com que o visualizamos na fotografia, seus lábios crispados, parece desafiar não apenas os que o desprezam mas também desafia algo que para ele como lemos no poema, "não é da Terra", algo que ele esconde e que, mais profundo que a tuberculose de que foi vítima fatal, impregna até a medula de seus ossos, instalando-se em algum lugar perdido e sem nome. Sua angústia é a mesma que alimenta os poetas simbolistas.
Godofredo, ao escrever esta obra, soube explorar bem essa faceta do poeta : procurou para isso destacar que Cruz e Sousa transformou essa dor em poesia. Essa poesia foi, desse modo, um produto da dor que o assolava e que, com ajuda de seus versos, conseguia por pra fora e o capacitar a lidar melhor com ela. Na concepção e análise do autor, Cruz e Sousa não poderia ser considerado um deprimido pois se assim o fosse, não conseguiria se tornar poeta e criar seus versos tão tocantes. E nos lembra que no contexto da época em que ele viveu do século XIX, a visão da sociedade era ainda carregada de estereótipos contra os negros e, por isso, era natural certas atitudes que seus pares assumiam no trato com ele.
Ao longo de uma atraente narrativa que desde o primeiro capítulo já seduz os leitores com revelações inéditas e surpreendentes, despertando sua curiosidade e levando- os a perguntar como o biografado, apesar de todas as dificuldades expostas, conseguiu produzir sua grandiosa obra, constituindo com ela uma prova da resiliência de que é capaz certos espíritos humanos em face às adversidades.
Há uma passagem no livro que Godofredo relata a humilhação sofrida por Cruz e Sousa pelo Visconde de Taunay, ex-presidente na época da província Nossa Senhora do Desterro, que se encontrava residindo no Rio de Janeiro. O Visconde o fez esperar do lado de fora de sua casa enquanto lia uma carta de recomendação de políticos catarinenses trazida por ele. Assim descreveu Godofredo a humilhante recepção de que ele foi vítima no Rio de Janeiro :
(...) Taunay, ex-presidente de Santa Catarina (este era o título equivalente hoje a governador) , foi frio e distante. Raimundo Magalhães Júnior, baseado em correspondência do poeta a amigos de Desterro, relata que em uma ida do poeta à casa do ex-presidente, este nem se dignou a convidá-lo a entrar. Cruz e Sousa ficou do lado de fora. Trazia uma carta de recomendação de políticos catarinenses. Taunay, se a leu, leu -a sozinho em sua sala de trabalho. (NETO, Godofredo de Oliveira, p.71)
Apesar dos reveses, Cruz e Sousa não desiste e continua insistindo sem suas tentativas de apresentar e desenvolver a sua arte. Numa carta ao seu amigo Virgílio Várzea, o poeta catarinense no surpreende com uma declaração estranha na qual ressalta suas qualidades arianas e sua admiração pela cultura de uma raça que tudo fazia para o rejeitar :
(...) para mim, pobre artista ariano, ariano, sim, porque adquiri por adoção sistemática, as qualidades altas dessa grande raça, para mim que sonho com a torre de luar da graça e da ilusão, tudo vi escarnecedoramente, diabolicamente, num tom grotesco de ópera bufa”. (NETO, Godofredo de Oliveira, p. 72).
Aparentemente essa declaração do poeta encerra uma grande contradição. Como poderia ele admirar assim uma cultura que o rejeitava ? Godofredo nos oferece uma explicação válida ao lembrar-nos que devemos encarar essa admiração de Cruz e Sousa no contexto da época em que ele viveu, não podemos dissociar essa admiração do fato de que a intelectualidade daqueles tempos cultuava a filosofia corporizada na raça ariana, exatamente como hoje se cultua as filosofias vigentes dos povos considerados mais desenvolvidos economicamente.
Exatamente por causa dessa admiração pela cultura ariana, Cruz e Sousa acabaria por pagar um alto preço por essa sua admiração após a sua morte. A elite branca, segundo Godofredo, haveria de explorar negativamente esse fato, pois ao deturpar a realidade, afirmando que ele não aceitava a sua raça, era uma forma de desqualifica-lo. Apenas no final do século XX é que a elite brasileira começa a valorizar e enaltecer suas matizes culturais, destacando a contribuição africana na formação da nação brasileira.
Godofredo demonstra, por toda sua obra, que o calvário de Cruz e Sousa pode desanimá-lo a ponto dele abandonar o Rio de Janeiro e voltar a Desterro, sua cidade natal em 17 de março de 1899, mas que apesar de tudo ele ainda considerava que a única saída e consolo para tudo o que passava era de dedicar à literatura. Durante os meses em que passou longe do Rio, dedicou-se à leitura de clássicos literários da época que muito viriam a influenciá-lo na confecção de seus poemas.
E há um relato no livro sobre sua vida ligando-o ao fundador da Academia Brasileira de Letras, contado em detalhes por Godofredo. Apesar de Machado de Assis ser mulato, o que faria supor que esse fato poderia ter angariado a sua simpatia pelo poeta, para nosso espanto, isso não representou influência alguma. Pelo contrário, acabamos por ser informados que Machado de Assis nem se dignou a ir ao seu enterro e muito menos lutou para que ele entrasse na Academia Brasileira de Letras. Uma contradição digna de nota e que dá o que pensar.
Godofredo ainda chega a relatar que, em novembro de 1893, Cruz e Sousa casou-se com Gavita Rosa Gonçalves, também descendente de escravos africanos. Deste matrimônio nasceram quatro filhos, Raul, Guilherme, Reinaldo e João. Mas todos faleceram de tuberculose pulmonar anos depois. Sua esposa, viria a sofrer de distúrbios mentais que chegariam a refletir até mesmo nos escritos do poeta.
Ainda em 1893 Cruz e Sousa publicou dois livros: Missal (influenciado pela prosa de Baudelaire) e Broquéis; obras que marcaram o lançamento do movimento simbolista brasileiro. Em 1897, concluiu um livro de prosa poética denominado Evocações. Quando preparava-se para publicá-lo, viu-se abatido pela tuberculose e partiu para Minas Gerais em busca de tratamento. Faleceu em 19 de março de 1898 aos 36 anos de idade. Seu corpo foi levado para o Rio de Janeiro num vagão para transporte de gado, conforme descreveu na pungente epígrafe que abre esse artigo. O amigo José do Patrocínio pagou as despesas com o funeral e o enterro no cemitério São Francisco Xavier. No ano de sua morte ainda foi publicado Evocações. Em 1900, Faróis; e em 1905, o volume de Últimos Sonetos.
O negro que contrariou o preconceito racial e se pôs a liderança do Simbolismo brasileiro, foi autor de uma obra que traz versos como:
Anda em mim, soturnamente Uma tristeza ociosa
Sem objetivo, latente Vaga, indecisa, medrosa
(Tristeza Do Infinito – Últimos Sonetos).
Além de:
De dentro da senzala escura e lamacenta Aonde o infeliz
De lágrimas em fel, de ódio se alimenta Tornando meretriz”
(Da Senzala – O Livro Derradeiro).
É impossível não percebermos, num primeiro momento nesses versos, todo o sofrimento o sofrimento de uma alma ecoando diretamente em sua obra. Além de sentirmos neles a consciência social e humanista de um cidadão.
O fim trágico devido à tuberculose, chegou no dia 19 de março de 1898 deixando um legado que só agora começa a ser exaltado e a ganhar a devida projeção, dimensão e importância na literatura brasileira.
. E esse livro biográfico de Godofredo de Oliveira Neto vem, sem dúvida, contribuir para que se faça justiça e lhe garanta seu lugar no panteão dos grandes poetas brasileiros.
Referências Bibliográficas
CORRAZE, J. As comunicações não verbais. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
BILAC, Olavo; SOUSA, Cruz e; ANJOS, Augusto dos. Poesia e Poetas do Parnasianismo, Simbolismo e Pré-Modernismo. Manaus: Editora Valer, 2010.
CRUZ E SOUSA, João da. Obra Completa. Organização de Andrade Murici. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1995.
NETO, Godofredo de Oliveira. Cruz e Sousa o poeta alforriado. Editora Garamond, Rio de Janeiro, 2010.
RECTOR, M.;TRINTA, A. A comunicação não verbal: a gestualidade brasileira. Petrópolis, Vozes, 1985.
SOUSA, Cruz e. Broquéis; Faróis. São Paulo: Martin Claret, 2002.